As cinco medalhas que Maria Carolina Santiago “empilhou” em Tóquio, como se diz no jargão esportivo, estavam literalmente empilhadas ao lado de sua cama na manhã desta quinta-feira (2).
A nadadora, que compete nas classes para atletas com deficiência visual, havia as deixado com cuidado por ali antes de cair no sono, sem fazer barulho para não acordar a companheira de quarto na Vila Paralímpica e exausta após o fim de sua participação nos Jogos. Ao acordar, logo foi conferir e admirar o novo patrimônio mais uma vez.
Diante de um programa extenso de caídas na água, só agora ela pôde relaxar e tentar mensurar o impacto de sua campanha no Japão. Aos 36 anos, a nadadora nascida no Recife que fez sua estreia em Paralimpíadas sairá delas com a melhor performance entre todos os participantes brasileiros e um dos melhores desempenhos do evento em geral.
Foram três ouros (50 m livre, 100 m livre e 100 m peito), uma prata (revezamento 4 x 100 m livre misto) e um bronze (100 m costas), números inéditos para uma atleta do país em uma única edição dos Jogos.
Apesar de se considerar “vidrada” em recordes e marcas, a pernambucana descobriu vários dos feitos que realizou à medida que eles aconteceram.
“Hoje eu sinto o peso disso, sei o quanto foi importante cada etapa. Virou um símbolo mesmo. Nós, mulheres, ganhamos muito com isso, abriu portas para que as pessoas acreditem que é possível, que não temos nada a menos. Se tiver investimento, a gente vai chegar. As cinco medalhas servem para que uma menina olhe e veja que, se ela consegue, eu posso conseguir também”, Carol afirma em entrevista por telefone, do Japão.
A nadadora não queria repetir a experiência que teve no Mundial de Londres, em 2019. Na ocasião, medalhas e recordes a fizeram despontar no esporte paralímpico, porém ela também se viu totalmente levada por suas emoções.
“Eu tinha medo, porque no Mundial senti picos de ansiedade. Se tivesse sido campeã de uma prova, ficava animada e me atrapalhava. Se nadava mal, tinha que me reorganizar para conseguir nadar de novo. Em Tóquio, como fui batendo metas grandiosas e isso estava saindo o tempo todo na mídia, precisava ter controle emocional”, explica.
Foi determinante para isso o trabalho com dois psicólogos: Ana Lúcia Castello, que a atende regularmente, e Fabrizio Veloso, profissional do CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro).
Carol comemora ter sido estimulada da maneira certa pela equipe. Antes do revezamento, por exemplo, no mesmo dia em que ela já tinha nadado a prova individual dos 100 m, o treinador Leonardo Tomasello consultou Fabrizio e recebeu autorização para fazer algo que ele sabia que irritaria a nadadora, mas considerava primordial para que ela alcançasse suas últimas forças.
“Ele me disse para ficar tranquila, que talvez eu não conseguisse [nadar bem], mas que já estavam satisfeitos com a minha performance até ali. Eu fiquei muito indignada quando ele disse ‘vai tranquila’ na hora do balizamento, mas já não podia mais me comunicar com ele. Deu certo e eu consegui tirar leite de pedra”, diverte-se.
A atenção aos detalhes também marcou a sua preparação para as Paralimpíadas, mesmo diante das dificuldades impostas pela pandemia e do fato de Carol ser praticamente uma novata no esporte adaptado.
Ela nasceu com a síndrome de Morning Glory, alteração congênita na retina que reduz seu campo de visão. Praticou natação convencional por muito tempo, depois ficou anos afastada das piscinas e só migrou para o esporte paralímpico em 2018.
Após o Mundial de 2019, foi notado por sua equipe técnica que a atleta apresentava muitos altos e baixos nos treinamentos. A razão era hormonal. Ela aponta que a questão foi tratada com sensibilidade, não desprezo, pelos homens que acompanham sua carreira.
“A comissão olhou para a minha condição de atleta mulher, não achou que eu fosse incompetente. Foram procurar uma pessoa da ginecologia do esporte para fazer um trabalho comigo. Ela ajustou esse ciclo, o que é difícil, porque cada pessoa tem o seu, e deu certo. Parei de perder treinos e comecei a performar muito bem”, afirma.
Cada uma das cinco medalhas da pernambucana tem a sua história e é desfrutada de maneira diferente. O bronze nos 100 m costas possui o gosto da primeira vez, numa prova que não praticava na natação convencional e na qual demorou para se sentir confiante. O ouro nos 50 m livre foi obtido numa classe funcional acima da sua, contra competidoras que enxergam mais.
O título dos 100 m livre confirmou o domínio na prova que havia vencido no Mundial e lhe deu a vaga em Tóquio. A prata no revezamento misto, quando segurou a segunda posição mesmo exausta e percebendo pela movimentação da água que o ucraniano se aproximava, foi valiosa por ter deixado tudo o que tinha na piscina. E por fim o ouro que ganhou com sobras nos 100 m peito, uma prova que adora nadar, mas em que demorou para conseguir resultados.
Depois de um período de descanso, ela retomará os treinos já com o foco em Paris-2024. O programa de provas para a próxima edição talvez seja menor. A nadadora e eu técnico ainda vão discutir a respeito.
A versatilidade da multimedalhista faz muita gente questionar quais poderiam ser seus números e recordes caso tivesse entrado no esporte adaptado mais cedo. A pernambucana já escutou muitas vezes esse comentário, mas prefere analisar a situação sob outra perspectiva.
“Eu não penso que poderia ter sido mais, ou no que conquistaria. Penso que 2018 foi o marco da minha vida e que a partir dali eu consegui ser a minha melhor versão. Sou feliz de realizar o que estou realizando. É o melhor momento da minha vida e tenho orgulho de ter tomado isso para mim, da coragem em ser uma atleta de alto rendimento com 36 anos”, encerra. (BN)