Os estados brasileiros não sabem ou não informam a raça de mais de 1/3 das pessoas mortas pela polícia em 2020. Ao menos 11 unidades da federação não passam nenhum tipo de informação sobre a raça/cor da pele das vítimas das duas corporações (polícias Militar e Civil). Mesmo entre os que coletam e disponibilizam os dados, há vários casos de “raça não informada”.
Considerando apenas os casos em que a raça é divulgada, os números revelam que 78% dos mortos pelas polícias são negros.
É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo G1 dentro do Monitor da Violência, uma parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Os pedidos foram feitos para as secretarias da Segurança Pública dos estados (e diretamente para as corporações em alguns casos) por meio da Lei de Acesso à Informação e das assessorias de imprensa. Foram solicitados os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa.
Com exceção de Goiás, que não divulga nenhuma informação, todos os estados informam a quantidade de pessoas mortas pela polícia: 5.660, uma ligeira queda (-3%) em relação a 2019.
Dez estados, porém, não divulgam as mortes em confronto policial por raça, informação que também foi solicitada pelo G1. Assim, com Goiás, são 11 os estados que não divulgam as informações raciais de forma completa (de ambas as polícias). Eram 12 no último levantamento, referente ao primeiro semestre do ano passado.
O levantamento mostra que:
- a raça de 2.064 das 5.660 pessoas mortas pela polícia em 2020 não é conhecida, ou seja, 36% do total
- 11 estados não divulgam os dados de raça das vítimas de ambas as polícias
- das 3.596 vítimas para as quais há a informação da raça, 2.815 são negras (78%)
- Acre e Roraima são os únicos estados que informam a raça de todas as vítimas mortas no ano
- mesmo entre os estados que coletam os dados, 1.013 vítimas aparecem como raça “não informada” ou “desconhecida”
Falta de transparência
Para Felipe Freitas, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, a falta de informações impede a construção de políticas públicas democráticas na área da segurança.
“Nas áreas da saúde e da educação, por exemplo, só foi possível avançar em uma agenda de enfrentamento ao racismo à medida em que se qualificaram os instrumentos de registro das informações, que permitiram identificar a desigualdade racial”, compara.
Além da não divulgação dos dados, a falta de padronização chama a atenção. Há casos em que “albino” foi considerado uma raça, por exemplo, sendo que o albinismo é uma doença, e não uma categoria racial.
A referência é a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que trabalha com as seguintes opções: branca, preta, parda, indígena ou amarela. Os pardos e pretos compõem os negros.
Para superar essas dificuldades, Freitas aponta que um dos caminhos é treinar as equipes da área da segurança pública para perguntar e preencher a informação sobre sobre raça/cor, assim como ocorreu nos serviços públicos de saúde.
“A área da saúde passou quase dez anos investindo em formação para que eles aprendessem a, no atendimento da atenção básica, perguntar qual a raça/cor dos pacientes. É preciso desenvolver o processo de formação, corrigir os sistemas para não permitir que se avance sem preencher essa informação e retirar as categorias ignorado ou ‘não quis declarar’, que criam uma limitação estatística gigantesca”, exemplifica.
Não houve nenhum caso enquadrado como “indígena”, por exemplo, no levantamento do G1. Isso não quer dizer que nenhuma pessoa indígena foi, de fato, morta pela polícia. Como não existe uma padronização oficial de preenchimento, elas podem ter sido categorizadas como pardas ou podem constar da categoria “não informado”.
Por que a polícia mata mais negros?
Para Felipe Feitas, o racismo estrutural explica por que a polícia mata mais pessoas pretas e pardas. “O peso das representações negativas e dos estereótipos em relação às pessoas negras produz socialmente essa autorização para matá-las”, afirma.
No entanto, há questões técnicas, relacionadas à dinâmica entre a polícia e o Judiciário, que influenciam essa seletividade, diz.
“O modelo de policiamento brasileiro é ostensivo, de grandes operações e de flagrante. E a atuação do policial na rua é muito influenciada pelas práticas discriminatórias que estão presentes na sociedade. Assim, há um alto grau de discricionariedade no contato com a população. E o Judiciário é muito frágil em estabelecer balizas para a ação policial”, explica Freitas.
A diretora da Anistia Internacional, Jurema Werneck, também aponta a responsabilidade do Judiciário e do Executivo, principalmente dos governadores, nos assassinatos de negros cometidos pelos agentes de estado.
“Não é só matar, é deixar matar. O racismo na administração do estado também está contribuindo para esse quadro”, afirma Jurema. “E esconder informação é uma estratégia para continuar permitindo essa violação profunda dos direitos humanos das pessoas negras no Brasil.”
Como parte da solução, Felipe Freitas aponta que, mais do que focar nas polícias, a sociedade civil precisa pressionar outras instâncias de poder – o Ministério Público, por exemplo, tem a função constitucional de controle externo das polícias.
“E não só para pensar se o policial que age abusivamente está sendo punido ou não, mas que não se valide o produto da ação policial que não é produzida legalmente. Isso é uma forma de estimular uma conduta policial dentro da legalidade e, ao mesmo tempo, reprimir a ação policial fora da legalidade”, diz Freitas.
Justificativas dos estados para a falta de dados
Os estados que não divulgam as informações de raça têm explicações distintas para a falta de transparência.
No Amazonas, por exemplo, a Secretaria da Segurança Pública diz apenas que “os dados não são coletados com esse detalhamento”.
Já em Minas Gerais, o governo diz que “para elaboração dos dados são necessários trabalhos laboriosos de análise, consolidação e tratamento” e, por isso, não tem condição de passar as informações referentes à Polícia Militar.
No Pará, a justificativa é que “a grande maioria [dos dados] não foi informada no momento do preenchimento do boletim de ocorrência”. O estado, porém, não diz a raça de nenhuma das vítimas.
O Núcleo de Análise Criminal e Estatística da Secretaria da Segurança da Paraíba, por sua vez, diz que, do mesmo modo como é feito pelo IBGE, o método de captação do dado de raça/cor é a “autodeclaração”. “Porém, como isso não é possível para as pessoas mortas, na verificação estatística deste quesito utiliza-se o registro da classificação inserida na Declaração de Óbito que compõe o Sistema de Informação de Mortalidade do Datasus.”
“Esse é o documento oficial, muito mais seguro e apropriado do que uma informação de um parente ou de um policial que visualiza o corpo. Em razão disso, como se utiliza outra fonte de dados para a verificação do quesito raça/cor, não é possível desagregar esta variável para as outras classificações do banco de informações oriundas das polícias utilizado pelo núcleo, a exemplo dos inquéritos policiais, de onde vêm as informações para classificar o CVLI como feminicídio, latrocínio, confronto policial, entre outros”, diz a secretaria. (G1)