Em 1990, quatro meses após perder para Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reconheceu que seu partido dormiu no ponto com os evangélicos.
O cientista político André Singer, que anos depois viraria porta-voz do seu governo, perguntou o que ele teria feito de diferente para esvaziar as más impressões que causava no nicho cristão, como o boato de que, se eleito, daria um fim a templos evangélicos.
“Certas coisas nós discutíamos a partir da nossa cabeça, a partir da cabeça do pessoal politizado. Quando disseram que a gente ia acabar com as religiões não católicas, nós fizemos um único programa especial sobre o tema, quando deveríamos ter realizado várias inserções”, o petista respondeu.
Lula se vê às voltas com desafio similar em seu sexto pleito presidencial e, após alguns bate-cabeças em sua campanha, encorpa uma reação ante a preferência de Jair Bolsonaro (PL) no eleitorado evangélico.
O petista reeditou a mesma estratégia que usou em 2002, quando produziu um panfleto que chamou de Carta aos Evangélicos -espécie de versão religiosa da Carta ao Povo Brasileiro, o famoso documento que ofereceu para serenar os ânimos do mercado, temeroso com uma vitória sua.
A agência de comunicação responsável pela candidatura redigiu o novo folheto, intitulado “É tempo de esperança, o Brasil tem jeito -o que os evangélicos realmente querem para o Brasil”. Na capa, uma mão serve de vaso para uma planta que começa a germinar.
O time lulista espera colher frutos eleitorais com o material que, segundo o pastor presbiteriano Luis Sabanay, coordenador do Núcleo de Evangélicos do PT, teve uma primeira tiragem de um milhão de panfletos, escoados para todos os estados brasileiros.
A distribuição vai priorizar corredores de ônibus, estações de metrô e locais de grande circulação, afirma Sabanay. A meta é “desmentir o discurso da ‘falsa moral’ da campanha evangélica de Bolsonaro”.
Versículos bíblicos dos livros de Salmos, Mateus, Romanos, Eclesiastes, Gálatas, Timóteo e Provérbios servem de espinha dorsal para o texto. É a partir deles que a coligação introduz temas fulcrais da campanha, como educação e fome, mas também tópicos mais sensíveis a evangélicos.
“Queremos a defesa da família”, um dos itens, inicia com uma passagem de Provérbios: “Os filhos dos filhos são uma coroa para os idosos, e os pais são o orgulho dos seus filhos”. O textinho que segue afirma que valores e família são pontos centrais para Lula e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB).
O bloco prega do direito de brincar ao respeito aos mais velhos. Nenhuma palavra sobre visões progressistas que horrorizam a direita conservadora, como lares que não reproduzam o arranjo da “tradicional família brasileira”, ou seja, casais formados por um homem e uma mulher, além de filhos.
Outro trecho aborda a liberdade religiosa, que, na narrativa bolsonarista, estaria sob ameaça com Lula. Um versículo de Gálatas (“não useis da liberdade para dar ocasião à carne, antes pelo amor servi-vos uns aos outros”) embala a ideia de que é preciso refutar a política como “espaço de ódio”.
Para Lula e Alckmin, “discípulos de Jesus”, fazer política seria um “ato de amor, não um instrumento de violência”.
Duas décadas atrás, milhares de militantes distribuíram o panfleto pró-Lula em portas de igrejas. A capa trazia a estrela do PT com o peixe-símbolo do cristianismo. O candidato, que naquele ano ganharia a Presidência após três tentativas frustradas, advogava por mais “princípios cristãos para o nosso povo”.
O PT via a urgência de se mexer frente ao favoritismo no segmento do presbiteriano Anthony Garotinho, primeiro presidenciável evangélico com densidade eleitoral. O Censo mediu, dois anos antes, que essa parcela representava 15,4% da população. Hoje, fiéis são 1 a cada 4 eleitores, segundo o Datafolha.
Aquele pleito selou a paz entre o PT e boa parte de uma cúpula pastoral que por anos fustigou a legenda, com raras exceções -como o hoje lamentado apoio que o pastor Silas Malafaia deu a Lula no segundo turno em 1989, depois de endossar Leonel Brizola na primeira rodada.
Circula nas redes sociais um vídeo que ilustra bem esse cenário: pastores hoje bolsonaristas sorriem no ato em que Lula, no primeiro ano de mandato, sanciona a Lei da Liberdade Religiosa. A regra garantiu personalidade jurídica a igrejas, que deixaram de ser simples entidades de classe, como clubes de futebol.
Na ocasião, o petista lembrou os pastores que questionavam se ele fecharia igrejas. O ex-senador Magno Malta (PL), um dos seus maiores detratores no pleito atual, sorria na primeira fila quando Lula disse: “Aqueles que me difamaram vão ter que pedir desculpas não a mim, mas a Deus e à própria consciência”.
As rachaduras na aliança entre PT e líderes evangélicos ficaram visíveis em 2014, quando Dilma Rousseff (PT) perdeu o respaldo de vários deles e acabou derrotada por Aécio Neves (PSDB) no bloco religioso.
Em 2018, o massacre: Bolsonaro bateu o petista Fernando Haddad com 7 em cada 10 votos de fiéis. Surtiu pouco efeito outro panfleto produzido pelo PT, a “Carta Aberta ao Povo de Deus”, em que Haddad alerta sobre “o medo e a mentira semeados entre o povo cristão contra candidatos do PT” desde 1989.
“Comunismo, ideologia de gênero, aborto, incesto, fechamento de Igrejas, perseguição aos fiéis, proibição do culto: tudo o que atribuem ao meu futuro governo foi usado antes contra Lula e Dilma.”
O primeiro discurso de Lula após a anulação de suas condenações da Lava Jato perigou azedar ainda mais a relação com pastores graúdos do país. Era março de 2021, pico da pandemia de coronavírus. O ex-presidente sugeriu que igrejas tinham sua parcela de culpa nas mortes. O papel delas, disse, era “ajudar a orientar as pessoas”. “Não é vender grão de feijão ou fazer culto cheio de gente sem máscara.”
A alfinetada tinha destino: o apóstolo Valdemiro Santiago, que chegou a vender sementes de feijão, até R$ 1.000 cada uma, alegando falsamente que o cultivo delas traria a cura da Covid-19. Muitos pastores se solidarizaram com o líder religioso à época, renovando pactos de “PT nunca mais”.
A ofensiva lulista para recuperar terreno nos templos vinha patinando até agora, com pouco mais do que vídeos direcionados a cristãos e um anúncio pago para o Google pôr no topo das buscas um link que desmente a fake news sobre a intenção de acabar com igrejas.
Não há nem sequer consenso interno sobre a dose certa para dialogar com evangélicos. Parte da campanha acha que é melhor não entrar a fundo nessa seara, até para não deixar o assunto em evidência, como desejam bolsonaristas.
Nos últimos dias, a campanha intensificou ações que buscam estancar a sangria no voto evangélico. Tenta impulsionar, em aplicativos de conversa, uma corrente em que cada pessoa precisa explicar “para três amigos religiosos” que Lula sancionou leis simpáticas a evangélicos e jamais quis fechar templos.
O ex-presidente participará nesta sexta-feira (9) de seu primeiro encontro com evangélicos na corrida eleitoral, em São Gonçalo, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. O pastor Paulo Marcelo, candidato a deputado federal pelo Solidariedade, legenda que endossa Lula, estará lá.
Ele, crítico da interlocução tímida da campanha com pentecostais, elogia as novas iniciativas. “Demorou um pouco para acordarem, mas ainda vai dar tempo”, diz. “Os panfletos são bem esclarecedores, falam algo que o evangélico gostaria de ouvir.” E têm o bônus de atiçarem o outro lado, acrescenta.
Malafaia reagiu. “Ou rasga a Bíblia e fica com panfleto mentiroso de época de eleição”, sugeriu o pastor, “ou rasga o panfleto e fica com a palavra de Deus”. (BN)