Crianças que sofrem abuso sexual, físico e emocional podem apresentar não apenas cicatrizes físicas e psicológicas, mas também genéticas. Estudo feito pelas Universidades de British Columbia, no Canadá, e Harvard, nos EUA, revela ainda que a marca genética é tão profunda que produz alteração no DNA e pode, ao menos em tese, ser transmitida para gerações futuras. Há tempos especialistas sabem que vítimas de abusos na infância carregam por toda vida os danos emocionais decorrentes. Mas queriam checar se o dano poderia chegar aos genes. O trabalho, publicado na Translational Psychiatry, foi baseado na comparação de marcadores químicos presentes no DNA de 34 homens adultos que haviam sofrido diferentes tipos de abuso.
As alterações constatadas no DNA são criadas por um processo chamado metilação. Segundo os autores do estudo, a melhor metáfora é imaginar que ele funciona como uma espécie de interruptor do tipo dimmer nos genes, determinando em que grau um gene em particular é ativado ou não. Os mecanismos de “ligar” e “desligar” genes são estudados no campo da epigenética. Acredita-se que há uma forte influência de fatores externos, relacionados ao ambiente e às experiências de vida, na expressão genética. De acordo com os especialistas, as pessoas expostas a abusos continuados apresentam uma liberação acima da média do hormônio cortisol, o chamado hormônio do estresse. Originalmente, ele é liberado para induzir uma resposta imediata do organismo e foi muito útil aos nossos ancestrais para escapar de predadores. O nível do cortisol cai imediatamente quando o perigo se dissipa. Porém, em casos de abusos continuados, a liberação excessiva do hormônio provoca as alterações genéticas – as metilações fora de padrão.
Os cientistas decidiram buscar por sinais de metilação em espermatozoides, na premissa de que o estresse na infância deixaria marcas genéticas que poderiam até ser repassadas aos descendentes, como já havia sido demonstrado em estudo com animais. “Os resultados encontrados em camundongos foram assustadores”, contou a coautora do estudo, Nicole Gladish, da British Columbia. “Filhotes de roedores submetidos a choques herdaram dos pais as marcas genéticas e apresentavam reações de medo quando achavam que seriam submetidos a uma descarga elétrica.” Os cientistas encontraram uma diferença significativa na metilação de vítimas e não vítimas de abuso em 12 regiões dos genomas. O estudo não demonstra consequências a longo prazo. O que se sabe até agora, diz Nicole, é que as alterações afetaram genes ligados à função cerebral e ao sistema imunológico.
Evidências
Para a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo (USP), os resultados vêm “se somar a uma série de evidências obtidas nos últimos anos de que experiências que a gente vive modificam nosso DNA”. “É um trabalho interessante, que pela primeira vez mostra que há alteração no espermatozoide. Mas tem limitações, como ter avaliado um número pequeno de indivíduos. É uma primeira evidência, mas ainda não sabemos o que ela pode representar.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.