A desgraça do ferryboat vai continuar assim mesmo?

Foto: Divulgação/Agerba

Por volta das 13h da quarta passada, dia 17, o sol era inclemente na Ilha de Itaparica. A extremidade norte da rodovia BA-001 tinha uma das pistas tomada pela fila de carros à espera de vaga em uma das embarcações que fazem a ligação entre Bom Despacho e Salvador. Ferryboat que chama. Sem qualquer organização, fiscalização ou sinalização, motoristas impediam o trânsito de carros que pretendiam entrar ou sair da BA, pelas transversais.

Muitas buzinas, alguns gritos. Agora sou eu a escrota bloqueando o acesso. Abro a janela, peço desculpas ao rapaz da caminhonete branca, dou uma ré. Ele grita que “é isso direto, todo dia”. Os carros atrás de mim também dão ré e eu recuo mais. O homem acelera desaforado, cruza a pista e vai embora. Tentamos arrumar a parte da fila que nos cabe e vamos nos acomodando para o começo de uma jornada que ninguém sabia quanto tempo duraria.

Depois de uma hora, escorre suor do meu corpo, meus cabelos estão molhados, minha roupa grudada. O ar-condicionado do meu carro (popular e velho) não dá conta e lembro da moça que morreu de hipertermia no show daquela criatura no Rio. Lá não tinha água, também não tenho. Tô meio tonta e enjoada. Abro as janelas e o calor piora. Fecho de novo. Nem a evidente oportunidade de negócios motiva os vendedores de coisas molhadas e geladas e andar naquele asfalto. Enfrentando o bafo do inferno só aquela cigana que queria ler minha mão.

Estou sozinha e não posso deixar o carro sem motorista, no meio de uma pista, pra ir ao mercadinho. Pego vinte reais e aposto nos moços do carro de trás. “Vocês podem comprar água pra mim?”. Pessoas gentis ainda existem ou na desgraça a gente se ajuda. Fugi, desviei, driblei, esquivei, saí de aú, mas, por fim, não teve jeito: chegou a minha vez, neste verão, de viver o suplício da travessia de ferryboat entre Bom Despacho e Salvador. A pé não seria pior.

A viagem – de aproximadamente 15 km – foi uma odisseia de oito horas que não desejo a ninguém. Mentira. Sou taurina e, talvez, sentimentos de vingança me façam desejar que certas pessoas passem por essa experiência. Além de alguns desafetos pessoais, principalmente uma galera da Agerba e da Internacional Travessias junto com amigos de diversas postos de poder e parentes até a quinta geração.

Mas não passam nem passarão nem passarinho porque são “prioridade” (não prevista em lei) e, quando precisam do serviço, o guichêzinho do canto esquerdo se abre pra todo mundo que tem quem indique. Aí, até esperam um pouco, mas entram na frente de quem tá criando raiz na fila quilométrica e embarcam no primeiro ferry atracado. Ninguém me contou, eu vi. Como a gente tem o (mau) costume de querer privilégio e não justiça, pessoal que passa pelo cantinho (e tem um pouquinho mais de poder) tá achando tudo bom.

É assim, calando a boca dos mais “letrados”, que, historicamente, cada um faz o que quer. Bem nosso, isso. Então, ninguém reclama além de uns “povo fala” de pobre se queixando na televisão. O que não dá em nada, já que pobre se queixando, por aqui, é a coisa mais comum do mundo, quase “ruído branco”. Normal. Privilegiados estão garantidos e em paz. Os que (ainda) frequentam a Ilha de Itaparica, chegam e partem em lanchas particulares. Os que precisam atravessar seus carros para seguir viagem pro Sul, pela BA-001, têm motoristas pra penar em seus lugares. Quem sobrou na utilização normal do ferry – e eu observei com bastante cuidado – foi carro popular e/ou velho, caminhões detonados e pobres a pé.

Ou seja, “ralé”. Gente para quem, na opinião “deles”, lazer será sempre “programa de índio” (pare que eu usei aspas). Cidadãos de segunda classe que “combinam” com dificuldades cotidianas, inclusive com aquelas que poderiam ser facilmente evitadas apenas com o cumprimento das leis. Ou alguém me explica em que parte do código de trânsito está permitido se formar uma fila de carros no meio da estrada movimentada, impedindo o tráfego de veículos em metade da pista de mão dupla, sem um cone sequer, que dirá guarda. Certeza de que, se não há um engavetamento por dia, é porque deus existe. Pronto, tá provado.

Falar do problema ferry todo mundo fala. É pepino há décadas, com breves intervalos de alguma dignidade. Evitar o ferry, todo mundo evita. Perceber o macro, a política, os interesses é fácil. Também a precarização e abandono da Ilha de Itaparica, como consequência evidente da dificuldade de acesso. Nenhuma novidade. Entender que a pane no sistema tem, também, o objetivo de convencer a opinião pública da necessidade da ponte prometida há mais de década que nunca sai. Tudo isso é chover no molhado. A questão é: quando se diz “precário”, “ruim”, “horrível”… na prática, você sabe do que se trata?

Depois descobri que meu caso nem foi dos mais graves. Minha amiga gastou 20 (VINTE!) horas para percorrer esses 15 km num feriado. Mais uma que nunca mais topa, a não ser por muita necessidade, cruzar Kirimurê a bordo de um ferryboat. “Ah, mas tem hora marcada”. Aham, vai lá. Todo mundo sabe que não funciona direito mais. E outra é que o absurdo desperdício de tempo já seria problema suficiente, mas piora por ser um tempo preenchido de abandono. Abandonados na pista, abandonados no pátio de embarque, abandonados na embarcação. É tudo desolador.

Ainda em terra, depois dos guichês de pagamento (paga-se pelo serviço e nem é barato), onde, antes, existiam boxes de todo tipo de comida e bebida, hoje há fantasmas de lanchonetes, com vendedores tristes e exaustos. Tudo é gasto, tudo é ruim, tudo é sujo, tudo é feio e quem trabalha ali concorda. Tá nas caras. O homem do outro carro foi dar uma volta e caiu, depois de tropeçar numa peça de concreto largada no canteiro, embaixo de uma árvore – meio depenada – onde fomos buscar algum ar. Os banheiros fedem à distância. Era muita gente ali, mas não vi um sorriso. Todo mundo de cara fechada.

Já no antiquíssimo Maria Bethânia, o bendito no qual consegui embarcar, bato papo com um dos rapazes que rondam ali a praça de máquinas. “Que merda isso aqui, hein?”, disse ao funcionário quando cruzamos olhares. “Falta de investimento”, ele falou, se aproximando, pra começar a desabafar o que todo mundo sabe. Três ferries (que ele chama por apelidos, achei fofo) parados, uma das “gavetas” inviável há anos (depois de uma reforma caríssima, funcionou por três meses), embarcações defasadas, falta de pessoal. Ele mesmo triste e suado, num uniforme gasto.

Finalmente, o ferry girou pra atracar e pude ver as luzes de Salvador. Já quase acabou. Ainda passariam pedestres entre os automóveis, a moça quase leva um retrovisor com a sacola, morro de medo das crianças se machucarem, toda vez eu acho que alguém vai ser atropelado. Tem a saída de pedestres, mas mistura gente com carro, motorista acelera em cima de gente, gente corre pra sair antes dos carros e ninguém organiza nada. Hora de ir e me despedi do rapaz perguntando “essa desgraça vai continuar assim mesmo?”. Ele riu e disse “oxe, vai”. Claro que vai. Por muitos motivos, mas, principalmente, porque a gente é mesmo um povo muito otário. “O que é público não é da sua conta porque não é de ninguém”, nos ensinaram. Quando o certo é exatamente o contrário.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo

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