Patrimônio histórico na Baixa de Quintas corre risco de desaparecer se Justiça não invalidar venda ou estado não desapropriar o bem
O leilão do imóvel que abriga o Arquivo Público da Bahia (Apeb) aconteceu no último dia 17. A praça teve como ganhador o único lance ofertado por uma empresa de Petrolina, em Pernambuco, no valor de R$ 13,8 milhões. O imbróglio envolvendo o casarão da Quinta do Tanque, na Baixa de Quintas, entretanto, continua.
A Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA) pediu à Justiça uma revisão da validade do leilão. A solicitação considera a pendência de uma decisão da Justiça sobre o recurso apresentado pelo governo do estado contra a penhora do bem.
O recurso do governo questiona ainda o valor do lance. Segundo o órgão, a quantia ultrapassa o valor justo a ser pago pelo imóvel.
O primeiro leilão aconteceria em novembro do ano passado, mas foi adiado por decisão judicial. Na ocasião, o valor do lance mínimo estava em R$ 8 milhões – a avaliação era de setembro de 2013. Em agosto de 2022, foi atualizado para R$ 13.806.175,20.
“É um absurdo. Poderia-se dizer que o valor foi alcançado por força da disputa, mas foi um lance único”, queixou-se ao Jornal da Metropole a procuradora-geral da PGE-BA para assuntos jurídicos sobre o leilão, Bárbara Camardelli.
Diante da diferença do valor, o governo da Bahia não participou do leilão com a justificativa de evitar um “dano injustificado ao erário público”.
Patrimônio histórico
O leilão do prédio da Quinta do Tanque é destinado ao pagamento de dívidas contraídas pela hoje extinta Superintendência de Fomento ao Turismo do Estado da Bahia (Bahiatursa). A penhora foi oferecida em 2005, na gestão do então governador Paulo Souto.
A oferta foi possível uma vez que o imóvel foi tombado em 1949 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no âmbito do patrimônio privado. É o caso de todos os casarões do centro de Salvador, por exemplo. O tombamento privado não impede a alienação do bem, apenas limitações de cuidado e preservação.
A situação muda se o estado desapropriar o imóvel. Nesse caso, passará por um novo tombamento do Iphan, dessa vez na esfera pública. Assim, não poderá mais ser vendido à iniciativa privada.
Em nota, o Estado já afirmou a sua decisão de tornar o imóvel público de forma legal, entendendo a necessidade de manter “o importante patrimônio cultural do Arquivo Público”.
Todavia a desapropriação do bem não pode ser realizada enquanto o leilão estiver em tramitação. O processo só será encerrado quando houver a transferência efetiva da posse, ou seja, quando o comprador pagar e assinar a carta de arrematação.
A procuradora Bárbara Camardelli explicou que a estratégia da desapropriação será usada se o recurso do Estado não for acatado pela Justiça.
Em relação à dívida, o governo da Bahia vai ter que pagar por precatório.
Memória do Mundo
Erguido no século XVI e tombado pelo Iphan desde 1949, o casarão da Quinta do Tanque já foi residência do padre Antônio Vieira. Hoje, abriga a segunda maior instituição arquivística do Brasil, com mais de 41 milhões de documentos históricos, segundo a Associação Nacional de História na Bahia (Anpuh-BA).
O Arquivo Público da Bahia é reconhecido pelo ‘Programa Memória do Mundo’ da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A organização chegou a alertar, em nota, quando o primeiro leilão foi suspenso, que “a preservação do patrimônio documental e de seu acesso público […] requer uma edificação em condições seguras”.
A Universidade Federal da Bahia (Ufba) também publicou, à época, um manifesto em repúdio ao leilão. A instituição reforçou a importância da arquitetura para o estudo e trabalho de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento no estado.
Membros da Associação de Arquivistas da Bahia (AABA) repudiaram igualmente a venda do imóvel, o que caracterizaram como uma “prejuízo inestimável” para a cultura e história do Brasil.
“Nós estamos bastante temerosos com o que pode vir a acontecer com o patrimônio documental da Bahia. É um patrimônio nacional, além de ser do estado”, disse a presidente do AABA, Leide Mota. “Não existe um prédio com condições adequadas para abrigar o acervo do tamanho do Apeb”, acrescentou.
O antropólogo e professor da Ufba Ordep Serra ainda classificou o leilão como “um dos momentos mais tristes da nossa história”. “Estamos colocando à venda, dilapidando, uma parte da memória da Bahia. Isso não tem perdão. A história trará [o leilão] como um momento infame”, declarou Serra.
Apesar da indefinição, a procuradora da PGE-BA, Bárbara Camardelli, assegurou que “nada vai acontecer”. “Se a Justiça não acatar o nosso recurso, vamos desapropriar o imóvel e o acervo não vai sair de lá”, sintetizou. (metro1)