Os cartórios baianos registraram o primeiro semestre com mais óbitos e menor número de nascimentos em toda a história do estado. Nunca se morreu tanto e nem se nasceu tão pouco como no primeiro semestre de 2021, segundo apontam estatísticas da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).
Os dados certamente têm relação com a pandemia de covid-19, que já tirou a vida de mais de 24,7 mil baianos e impôs temor a quem planejava constituir família.
A diferença recorde entre nascimentos e óbitos altera a demografia e, no futuro, pode levar a impactos na economia. Até o final de junho, os cartórios do estado registraram 52.834 mortes de todo tipo de natureza. Maior número da história para um primeiro semestre, esse dado é também 22% maior do que o ocorrido no mesmo período do ano passado, quando a pandemia já estava instalada há quatro meses.
Quando comparado com 2019, ano anterior à pandemia, o aumento no número de mortes foi de 18,4%. Os dados são compilados pelos cartórios desde 2003.
Presidente da Arpen-BA, Daniel Sampaio detalha que o que se verificou na prática é que os nascimentos, que vinham em crescimento constante, deram uma desacelerada significativa — ao passo que as mortes, que vinham crescendo na mesma proporção do crescimento populacional, tiveram um aumento exponencial.
Com relação aos nascimentos, a Bahia registrou o menor número de nascidos vivos em um primeiro semestre desde o início da série histórica em 2003. Até o final do mês de junho foram registrados 89.960 nascimentos, número 18% menor que a média de nascidos no estado desde 2003, e 2% menor que no ano passado. Com relação a 2019, ano anterior à chegada da pandemia, o número de nascimentos caiu 13% na Bahia.
“A constatação não é outra senão a de que, com a pandemia, as famílias ficaram com um pouco de receio de fazer o planejamento familiar”, diz o presidente. Neste período de intranquilidade no país, provavelmente as pessoas entenderam que o tempo é arriscado para a saúde de bebês, grávidas e puérperas, o que fez com que casais adiassem ou desistissem do plano de ter filhos, acredita ele.
O presidente regional da Arpen-BA explica que esse desbalanço pode promover impactos no desenvolvimento econômico do país lá na frente. Quando fatores como a covid-19 influenciam negativamente na demografia, cria-se aí um risco para o avanço, podendo, no futuro, ocorrer problemas como oneração da previdência e falta de mão de obra qualificada no mercado de trabalho, por exemplo.
O resultado da equação entre o maior número de óbitos da série histórica em um primeiro semestre versus o menor número de nascimentos da série no mesmo período é o menor crescimento vegetativo da população em um semestre na Bahia, aproximando, como nunca antes, o número de nascimentos do número de óbitos.
A diferença entre nascimentos e óbitos que sempre esteve na média de 72.276 mil nascimentos a mais caiu para apenas 37.126 mil em 2021, uma redução de 49% na variação em relação à média histórica. Em relação a 2020, a queda foi de 23%, e em relação a 2019 foi de 37%.
Por trás dos números
As estatísticas não são suficientes para dimensionar o tamanho do drama. Por trás delas há histórias como a do comunicador esportivo Flávio Gomes, 43 anos, que perdeu três amigos num intervalo de três dias na semana passada. O primeiro deles tinha 45 anos, vinha se recuperando de um câncer e era seu grande amigo de infância. Juntos, compuseram músicas que cantavam nas festas.
A segunda vítima foi sua colega de trabalho, uma gerente de marketing que, com 49 anos, foi infectada ao cuidar da mãe, que também teve a doença. O terceiro amigo deu entrada no hospital para uma cirurgia de vesícula, pegou covid-19 na unidade e faleceu.
“Isso me abalou porque foi um após o outro. Quando eu ainda estava incrédulo com a perda de um amigo, recebi a notícia de outra amiga e, depois, do terceiro. Sou muito religioso, estou tentando me acostumar com a ideia da perda das pessoas. A gente fica incrédulo, mas precisamos seguir. Foram muitas histórias, chorei bastante. O plano de imunização tem que acelerar porque senão vamos perder mais gente. Temos que lutar e exigir vacina, não tem outro caminho”, diz Flávio.
Conhecido por tratar de forma acessível a psicanálise através das redes sociais, Lucas Liedke escreveu sobre como as pessoas estão passando pela perda ambígua — um termo cunhado pela psicóloga Pauline Boss para explicar quando se vive o luto pela metade. O que Lucas observa é que o mundo continua aí, fisicamente presente, mas é impossível não sentir a ausência de uma vida que não existe mais, ou milhares de vidas.
“São tempos estranhos. Dias em que a gente se sente meio fora da realidade, como num sonho ou pesadelo que continua se repetindo”, diz.
O psicanalista avalia que, desde o início da pandemia, parece que tão difícil quanto enfrentar as perdas em si, é lidar com diferentes formas que cada um enfrenta o que está acontecendo: uns se deprimem, outros enraivecem, há quem se negue a aceitar os fatos. “Não estamos acostumados a essa dimensão do luto coletivo e a um período tão longo de incertezas”, completa ele.