Fábrica de vagas: Cursos de Medicina e Direito viram mina de ouro e MEC tenta controlar abertura de faculdades

Mensalidades exorbitantes e explosão de número de faculdades não refletem na qualidade do ensino

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Início de ano o movimento é sempre igual: dezenas de milhares de profissionais recém formados em todo tipo de faculdade entram no mercado de trabalho e outros milhares saem em busca de vagas em cursos muitas vezes já saturados e que podem ter mensalidades de até R$ 16 mil.

A proliferação abusiva de muitos desses cursos, em especial de Direito e Medicina, já abriu os olhos do Ministério da Educação (MEC). No ano passado, em meio a um embate entre grupos educacionais privados e o Supremo Tribunal Federal (STF), a pasta estabeleceu uma portaria para limitar a ampliação de vagas em cursos particulares de medicina. A intenção era tentar “assegurar a qualidade da formação médica no Brasil”, uma necessidade que há muito já era defendida por profissionais da área.

Fábricas de fazer dinheiro e mercado saturado

A estimativa é que cada vaga em um curso de Medicina valha cerca de R$ 2 milhões. Virou uma espécie de mina de ouro. Não à toa, em 2002, eram 113 faculdades e em 2018 o número já havia saltado para 322, quase o triplo. Presidente da Associação Bahiana de Medicina (ABM), Robson Moura não tem dúvidas de que essa expansão descontrolada das faculdades de Medicina no Brasil tem uma explicação clara: é uma maneira fácil de ganhar dinheiro. Em entrevistas à Rádio Metropole, o cirurgião oncológico pontuou que não é contra a abertura de novos cursos, mas eles precisam ser bem feitos.

“O Brasil é o segundo país do mundo que mais tem escolas de Medicina. O primeiro é a Índia, que tem 2 bilhões de habitantes. Hoje, curso de Medicina é uma fábrica de fazer dinheiro. Um aluno, ao longo da graduação, pode gerar em torno de R$ 1 milhão, com a mensalidade a R$ 12 mil”, afirmou.

Essa avaliação é compartilhada também pelo médico endocrinologista Osmário Salles, que defende que o governo federal precisa sim frear o que ele considera uma “proliferação abusiva” de faculdades de Medicina no país. No Jornal da Metropole no Ar especial que celebrou o Dia do Médico em outubro, ele avaliou ainda que esse movimento tem criado uma “pseudomedicina”, trazendo prejuízo não só para os profissionais que estão sendo formados, mas também para os pacientes e para o próprio sistema de saúde.

“Hoje, qualquer pessoa abre uma faculdade de Medicina em um buraco, cobra R$ 17 mil por mês, põe 60 alunos. O ensino hoje não tem nem professor. O aluno sai sem saber tocar o paciente. A gente está vivendo uma época evolutiva da tecnologia, mas uma época involutiva no amor e no carinho às pessoas”, disse. Esses valores cobrados, inclusive em faculdades de Salvador, são compatíveis com a mensalidade cobrada na Universidade de Oxford, considerada a melhor escola de Medicina do mundo, segundo o Times Higher Education 2023. Por lá, o custo anual é de 34 mil libras por ano, o equivalente a uma mensalidade de R$ 18 mil. Mas as exigências para cursar são muito maiores.

Para os cursos de Direito, não é muito diferente. São quase dois mil cursos aptos a funcionar, mas apenas 10% deles são recomendados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O resultado disso pode ser visto em números também: a média de aprovação no Exame de Ordem gira em torno de 15%. E ainda assim, o Brasil é o país com maior proporção de advogados por habitantes, à frente até de Índia, Estados Unidos Segundo a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), são 1,3 milhão exercendo a profissão. É como se existisse um advogado para 164 brasileiros residentes no país.

O lado mais fraco da corda

Os efeitos dessa tentativa de controlar o crescimento desenfreado de vagas e de faculdades, claro, podiam trazer prejuízos para os elos mais fracos da história: os alunos bolsistas, que durante muito tempo viram o sonho de ser médico ou advogado como algo fora da sua realidade. As próprias entidades representativas do setor alegavam que a medida iria desestimular as faculdades a oferecer vagas pelo Programa Universidade para Todos (ProUni). Afinal, elas teriam ofertas limitadas e, caso continuassem aderindo, ainda precisariam dedicar um percentual ao programa. A possibilidade de ter que reduzir as vagas para o público geral – que consegue honrar com mensalidades de até R$ 16 mil – era motivo de preocupação para o setor.

Sancionado em 2005, pelo presidente Lula (PT), o ProUni converte impostos não pagos pelas instituições privadas em vagas para alunos de baixa renda. O percentual de bolsas é fixo. Nas instituições filantrópicas, a proporção é de uma bolsa para cada nove alunos pagantes. Já naquelas que são instituições sem fins e com fins lucrativos, a proporção é de uma bolsa para cada 11 alunos pagantes. O programa ajuda a levar o acesso ao ensino superior para as minorias. Só nos últimos 14 anos, por exemplo, as mulheres negras ampliaram e até dobraram sua participação nos cursos mais concorridos, como Direito e Medicina, segundo um levantamento feito pela Agência Pública e pela Gênero e Número.

Para evitar que as ofertas deste programa sejam impactadas, na última semana de 2023, o MEC autorizou para este ano a ampliação de vagas exclusivamente para bolsistas do ProUni em cursos de Medicina e Direito de instituições privadas. Segundo a nota divulgada pela pasta, a norma “pretende evitar possíveis prejuízos aos processos seletivos de algumas instituições de educação superior” que aderiram ao programa. Essa foi a segunda vez que foi autorizada a ampliação de vagas para acomodar bolsistas do ProUni. Nos dois momentos a portaria com a medida foi emitida pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), que, desde 2022, precisa autorizar expressamente qualquer ampliação no número de vagas dos cursos de Direito e Medicina. No mesmo dia, o MEC também publicou portaria para adequar aos critérios estabelecidos pelo programa Mais Médicos tanto a abertura de novos cursos de Medicina quanto a ampliação de vagas.

Mais controle
Essa foi uma discussão acalorada no ano passado. Isso porque, em abril, o MEC voltou a autorizar a abertura de cursos e vagas – congelado desde 2018 -, mas apenas por meio de chamamentos públicos do Mais Médicos. Ou seja, o governo iria indicar as cidades onde seriam abertas essas faculdades e uma série de regras deveriam ser cumpridas, isso com a intenção de garantir qualidade de ensino e distribuir mais igualitariamente esses profissionais no país. Afinal, o número de médicos saltou de 220 mil em 2000 para mais de 560 mil em 2023, mas esse volume concentra-se nas capitais e no eixo sul-sudeste. A decisão obviamente não agradou as mantenedoras de ensino, que passaram a questionar na Justiça. O ministro Gilmar Mendes entendeu que a limitação é sim constitucional, mas o julgamento foi interrompido por pedidos de vista .

Agora, com a portaria, os pedidos de abertura de cursos, mesmo os judicializados, devem atender aos critérios do Mais Médicos, como o número de leitos na cidade e a demanda por profissionais na região.

(Metro 1)

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