Festa da Boa Morte: rituais que homenageiam ascensão da mulher negra chegam ao ápice hoje em Cachoeira

Com raízes na era colonial e escravocrata, a Festa representa uma resistência e solidariedade, diante da “preexistência da objetificação” de corpos negros no Brasil.

Foto: Ilustrativa/Flickr

Em festa desde o último domingo, dia 13 de agosto, a cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, tem nesta terça-feira (15/8), um dos momentos marcantes das homenagens à Nossa Senhora da Boa Morte, que vão até a próxima quinta-feira (17/8).

Hoje, o dia começou com uma grande queima de fogos. Ainda, pela manhã, uma procissão saindo da sede da Irmandade, seguida por filarmônicas locais, conduz o andor de Nossa Senhora da Glória até a Igreja Matriz, para a celebração de uma missa. O espaço foi reservado também para a transferência dos cargos e a posse da nova comissão da festa que vai atuar no ano seguinte.

Mas o que significa a Irmandade e a Festa da Boa Morte: evento que acontece há 203 anos e movimenta um grande número de seguidores e pesquisadores na região?
Aratu On conversou com a historiadora Magnair Barbosa para compreender as origens, tradição e a força cultural e religiosa que elevou o evento à condição de Patrimônio Imaterial da Bahia, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac).

Especialista em História e Cultura Baiana, além de Mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, nossa entrevistada destacou que a Festa, com raízes na era colonial e escravocrata, representa uma resistência e solidariedade, diante da “preexistência da objetificação” de corpos negros no Brasil.

Dessa forma, segundo Magnair Barbosa, as irmandades negras eram núcleos que funcionavam com tais objetivos. “No que concerne à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, é possível citar compras de alforria, ascensão social da mulher negra, alianças para aluguel de casas e compra de produtos, inclusive religiosos advindos da África”, ressaltou.

Por isso, acrescentou a historiadora, a Irmandade representa a força da mulher negra em diáspora, para criar e recriar a vida, alicerçadas pela fé nos santos e orixás, diante dos mais diversos conflitos sociais.

SURGIMENTO DA IRMANDADE

A especialista explicou que não existem registros escritos, mas estudos e a oralidade das irmãs mais antigas, em 2010, época em que a Festa da Boa Morte se tornou Patrimônio Imaterial, indicam que a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte migrou da devoção existente em Salvador, localizada na Igreja da Barroquinha, durante as lutas pela Independência do Brasil na Bahia.

“Nessa mesma igreja, havia desde o século XVIII a Irmandade Senhor Bom Jesus dos Martírios, irmandade masculina, cujos festejos pomposos estão registrados na historiografia baiana. E na mesma igreja, existia um altar lateral dedicado a Nossa Senhora da Boa Morte, cuja devoção era mantida por mulheres negras”, relatou.

De acordo com Magnair Barbosa, em Cachoeira, segundo registros orais, a festa começou a acontecer com a chegada das “negras do partido alto”, aquelas que conquistavam sua ascensão social, também integrantes da devoção, na cidade.

“A princípio, a festa acontecia na Casa Estrela, localizada na casa de n°41, situada na Rua Ana Nery. Em outros momentos em casas alugadas e só na década de 1970 foi doada uma casa ao lado da Capela D’Ajuda”, informou a historiadora.

SINCRETISMO RELIGIOSO

A Festa da Boa Morte faz parte do calendário de festividades da Igreja Católica. Contudo, as integrantes da irmandade são também sacerdotisas no candomblé. A conexão é possível, salientou a especialista, pelo fato dessas pessoas possuírem referências religiosas diversas e permitirem a prática de mais de uma doutrina.

No caso específico, há evidências da representatividade de uma enorme habilidade desenvolvida pelos antigos escravos para cultuar a religião dos dominantes, sem abrir mão de suas crenças ancestrais. Isso se deu por meio da reverência e fé na Virgem Maria, para ajudar na libertação dos que viviam escravizados e para pedir à Nossa Senhora, a intercessão na hora da morte.

PROGRAMAÇÃO

Segundo a historiadora, o dia 13 de agosto é dedicado pela Irmandade às irmãs falecidas. “Um dia para lembrar daquelas que vieram antes, entre as quais possuem vínculos consanguíneo e/ou religioso. Por isso, é realizada procissão noturna com a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte com as irmãs vestidas de branco, missa e na sequência uma ‘ceia branca’ restrita às irmãs”, explicou.

Dia 14, ressaltou Barbosa, é o dia de Nossa Senhora da Boa Morte, onde é realizada missa e na sequência procissão com a imagem da santa. “Essa noite é chamada de ‘dormição de Maria’ e as músicas entoadas e a ‘farda’ utilizada pelas irmãs denotam tom fúnebre”, comentou.

Dia 15, conforme a especialista, é o grande dia festivo, com foguetório, missa, flores e procissão diurna para Nossa Senhora da Glória, visto saberem as irmãs que Nossa Senhora não dormiu, mas ascendeu aos céus.

“Após ritos na igreja e nas ruas, se faz na sede da Irmandade um ato solene, com valsa entoada por filarmônica local e a recepção dos presentes com uma deliciosa feijoada”, acrescentou.

Entre os dias 15 e 17, conforme destacou Magnair Barbosa, acontece o samba de roda, já que o momento requer relembrar ainda da liberdade alçada pelo povo negro.

“Quando a festividade não tinha as proporções que têm atualmente, o mesmo era realizado na sede na Irmandade, mas nos últimos tempos se faz em palco montado próximo ao porto, com participação das irmãs em breve espaço de tempo”.

Ainda assim, pontuou a especialista, as irmãs recebem os presentes no dia 16 e 17 vestidas com “roupa de crioula”: uma bata rendada e saia colorida, e servem nesses dias, respectivamente, cozido e caruru.

O ASSUNTO FOI DESTAQUE NO BOM DIA BAHIA

(Aratu ON)

google news