Parte da cultura escolar brasileira, o dever de casa — também “lição” ou “tema”, a depender do estado — é defendido com argumentos que passam pelo estímulo ao envolvimento dos pais na formação escolar da criança e o incentivo para o desenvolvimento de autonomia e senso de responsabilidade dos estudantes. Mas a expansão do ensino integral, a busca por tornar o processo de aprendizagem mais atraente e o reconhecimento da existência de realidades desiguais entre os alunos têm levado ao crescimento de uma corrente que propõe a abolição dessa prática da rotina das escolas.
No Brasil, onde o debate ainda engatinha, a adesão à ideia é mais forte nas escolas de ensino integral — que representam só 15% das instituições do país. A universalização do modelo é uma das metas do ministro da Educação, Camilo Santana, que anunciou neste mês a liberação de R$ 4 bilhões para ampliar em 1 milhão as vagas desta modalidade nas escolas de educação básica do país.
A jornada de oito horas diárias de aulas permite que os estudantes concluam as atividades previstas na grade curricular enquanto ainda estão no colégio. Na Escola Lumiar, com unidades em São Paulo e Santa Catarina, essa constatação levou a rede a extinguir a aplicação dos deveres de casa.
— É importante o estudante ter esse momento de independência que é a tarefa para consolidar o aprendizado e pesquisar sobre os conteúdos abordados em sala de aula. Criando espaços na rotina, conseguimos fazer isso na escola e de uma forma mais interessante, pois ele pode fazer o dever com os colegas e consultar os educadores que ficam à disposição para tirar dúvidas — afirma Graziela Miê Peres Lopes, diretora-geral da Escola Lumiar. — Isso nos ajuda a não sobrecarregar o aluno, preservar o convívio com a família e dar tempo para ele se dedicar a outras atividades de interesse após a escola.
Tarefas ao ar livre
Graziela conta que os momentos dedicados à tarefa ocorrem dentro e fora da sala de aula. No caso dos alunos mais velhos, a escola dá autonomia para que eles escolham o local onde se sentem mais à vontade para fazer a lição — pode ser na biblioteca ou mesmo num espaço de convivência ao ar livre.
A proposta de abolir o dever de casa, diz ela, tem a ver com a metodologia desenvolvida pelo colégio e adotada também em escolas públicas brasileiras e estrangeiras, em países como Holanda, Índia e Inglaterra. O foco é na aprendizagem significativa, que leva em conta aquilo que os estudantes desejam aprender, mas sem deixar de lado o conteúdo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A educadora afirma que a lição é visto na maioria das escolas só como obrigação.
— Se não for estimulante, não gera engajamento. Gera sofrimento. E o aprender precisa estar associado ao prazer — diz a diretora, mestre em História, Filosofia e Didática de Ciências pela Universidade Claude Bernard, em Lyon.
Para a educadora Martha Guanaes Nogueira, autora do livro “Tarefa de casa: Uma violência consentida?” (2002), o dever de casa é historicamente uma atividade de repetição mecânica, de memorização, com “excesso de tarefas que, em vez de serem educativas, apenas sobrecarregam tanto os alunos como os seus pais”.
No projeto pedagógico do Espaço Ekoa, na Zona Oeste de São Paulo, há dever de casa apenas em situações excepcionais, como quando a envolve pesquisas com os familiares. A escola considera que as crianças têm tempo suficiente para realizar as tarefas no colégio.
— O período em casa pode ser preenchido por outras vivências: culturais, lúdicas, esportivas, motoras, expressivas, de lazer, cuidados com a casa, entre tantas outras — diz a diretora Ana Yazbek. — Percebemos que o dever acaba gerando tensão e um desgaste emocional grande para as crianças, que já dedicam oito horas diárias à escola.
A diretora pontua que o dever de casa tem um efeito muitas vezes desigual:
— Cada aluno vive em uma configuração familiar diferente. Será que todos podem demandar tempo dos pais para a realização dessa lição? Existe um ambiente propício para essa criança estudar em casa ou ela tem outras atividades para exercer?
Exemplos estrangeiros
Distritos de estados americanos como Nevada, Iowa, Califórnia e Virgínia passaram a minimizar a aplicação de lições de casa por considerar que a prática prejudica os estudantes que precisam, por exemplo, trabalhar ou cuidar dos irmãos. Além disso, pesquisas realizadas nos Estados Unidos mostram que milhões de jovens não têm a quem pedir ajuda, já que toda a família trabalha fora, enquanto outros não têm acesso a computadores.
Na França, o então presidente François Hollande sugeriu em 2012 banir os deveres de casa, também sob a alegação de que o método é injusto para os alunos com núcleos familiares menos presentes. A ideia não prosperou, mas o país criou um programa nacional para oferecer apoio aos estudantes que antes precisavam lidar sozinhos com suas tarefas, num esforço para “reduzir as desigualdades no acesso ao conhecimento e elevar o nível geral dos alunos”.
O educador americano Alfie Kohn, autor de “The Homework Myth” (“O mito do dever de casa”, em tradução livre), avalia que as escolas tradicionais expressam “uma espécie de arrogância institucional” ao se colocarem no direito de impor às crianças algo a ser feito quando elas não estão nas instituições de ensino.
—Nenhuma pesquisa mostra benefícios, acadêmicos ou de outra natureza, em obrigar os alunos a trabalharem no que equivale a um “segundo turno” depois da escola. As desvantagens do dever de casa, por outro lado, são claras: frustração, exaustão, conflito familiar, menos tempo para as crianças fazerem o que lhes dá prazer e, muitas vezes, diminuição do entusiasmo pelo aprendizado. O problema não é apenas quanto, ou que tipo de dever de casa deve ser atribuído aos alunos, mas sim se toda a ideia de tarefas obrigatórias após a escola é justificada — disse o autor ao GLOBO. (Oglobo)