É inevitável: quando uma pessoa morre, alguém precisa cuidar da burocracia. Tem que fazer atestado e certidão de óbito (sim, são coisas diferentes), contatar o serviço funerário da cidade, agendar o velório, escolher o caixão, avisar os parentes… Dá trabalho.
Esse processo pós-morte está ficando mais complicado, e tudo por conta da internet. Você já se perguntou o que acontece com os dados digitais de um falecido? O que era uma preocupação inexistente alguns anos atrás já está se tornando algo comum. Afinal, como recuperar arquivos na nuvem ou contas em jogos online de quem já não está mais por aqui? E o que fazer com os perfis das redes sociais?
É bom adiantar: ainda não há uma lei específica para tratar desse assunto. Mas dá para tomar providências junto ao Google e ao Facebook, por exemplo. Também existem empresas que cuidam dessa missão – algo como “agências funerárias digitais”. Vamos entender aqui como tudo isso funciona.
Tá na lei (ou não)
Durante a vida, você acumula seu patrimônio: automóvel, casa, ações, dinheiro no banco. Não importa. Quando você morre, entra em ação o direito sucessório, que lida com a transmissão desse patrimônio para os herdeiros, algo definido por lei, e por inventários e testamentos.
No mundo virtual, a chamada herança digital até existe, mas ainda não foi criada uma lei para tratar dela especificamente. E essas coisas demoram mesmo. “Antes de haver uma lei, é preciso que o fato aconteça bastante na sociedade para, aí sim, sair uma posição judicial”, explica Victor Simões Pereira, advogado e especialista em direito sucessório.
Victor trabalha em um escritório que, entre outros serviços, recebe clientes que pedem a remoção dos dados de um parente falecido. “Nesses casos, a comunicação é direto com as empresas que guardam essas informações, geralmente por aquela área de ‘Fale Conosco’ de cada site mesmo.” Caso você não seja da família do morto, é necessário possuir um interesse relevante, ou seja, provar que os dados que existem ali podem prejudicar você de alguma forma. Do contrário, seu pedido pode ser negado. É assim, por exemplo, que uma página do Facebook se torna um “perfil memorial” após a morte do dono (veremos mais sobre isso adiante).
Se o seu pai morre, você herda carro, roupa, relógio e conta bancária. Mas e se ele comprou filmes pelo iTunes? Você herda também? Herda. Mesmo não existindo uma lei específica dizendo, por exemplo, que a Apple deve passar os filmes dele para o seu nome.
É possível colocar “posses digitais” no inventário – ou seja, na descrição de todos os bens que ele tinha. A diferença é que os advogados vão ter mais trabalho, já que precisarão traduzir leis feitas para casas e relógios de modo que elas se apliquem a coisas mais abstratas, como uma biblioteca de aplicativos no Google Play ou uma conta de jogo.
Mas, claro, também existem os bens sem valor econômico, mas de grande valor afetivo: os perfis nas redes sociais. Vamos ver o que pode acontecer com eles quando você morre.
Desvendando configurações
O Facebook possui desde 2009 uma opção para transformar a conta de um falecido em um memorial. Nele, é possível prestar homenagens ou compartilhar lembranças. Isso acontece quando há uma solicitação de amigos e familiares informando a plataforma que a pessoa morreu.
O melhor jeito de controlar esse tipo de homenagem é escolher, em vida, um “contato herdeiro”. Essa pessoa de confiança será a responsável por aceitar novas solicitações de amizade, mudar a foto de perfil do memorial e fixar uma publicação por lá.
Em março de 2019, o Facebook deu ainda mais poderes para esse moderador, como a possibilidade de desmarcar o morto em fotos que ele julgar inconvenientes, além de um novo recurso chamado “Tributo”, que organiza melhor as homenagens criando um espaço dedicado para isso na linha do tempo do perfil memorial. A ferramenta ainda não está disponível para todos os países.
Para escolher um contato do tipo, é só entrar em “Configurações > Gerenciar conta”. Ele não terá acesso à sua conta nem às mensagens, mas dá também para selecionar a opção de excluir permanentemente o seu perfil quando a hora chegar.
O Google permite fazer uma espécie de “testamento” para a sua conta na plataforma por meio da ferramenta “Gerenciador de contas inativas”. Ali você decide o que deve ser feito com as mensagens do Gmail, as imagens do Google Fotos, os arquivos do Google Drive. Dá para escolher um contato de confiança, que ficará com tudo, ou simplesmente estabelecer um prazo de inatividade após o qual tudo será excluído. Nota: o contato de confiança não receberá suas senhas. Nem ele nem ninguém poderão passar e-mails em seu nome depois da sua morte.
Fora isso, familiares e outros conhecidos podem entrar em contato com a plataforma para encerrar uma conta ou solicitar os dados dela. Mas é bom preparar a papelada. O Google pede uma extensa lista de documentos digitalizados do falecido – tudo em inglês, com tradução juramentada – documento oficial feito por um tradutor habilitado.
No Twitter não dá para especificar um “herdeiro”. Se você quiser desativar a conta de um parente morto, terá de passar pela mesma burocracia de denunciar uma conta falsa. A empresa pede, por e-mail, uma série de documentos, de modo a evitar fraudes.
A melhor maneira de proteger os seus dados após a morte é escolhendo um “contato herdeiro”. No Google e no Facebook, isso é possível.
Enterro terceirizado
Embora escondidas nos meandros das configurações, as maneiras de cuidar das contas digitais de uma pessoa morta estão lá, não podemos negar. Mas por que, então, quase não se fala disso?
“No Brasil, nós não temos uma cultura de planejar o que será feito com os nossos bens após a morte”, diz Cíntia Pereira de Lima, professora de direito civil da USP e pesquisadora na área de dados pessoais na internet. De fato. Em 2016, o Brasil registrou 33.640 testamentos. O número aumentou em 42% em relação ao ano anterior, mas fica pequeno se compararmos aos 1.240.029 mortos acima de 15 anos naquele período, segundo o IBGE (a idade mínima para fazer um documento do tipo é 16 anos).
Se a cultura de cuidar do pós-vida ainda não se consolidou por aqui, em outros países já há até empresas especializadas nisso.
É o caso da DigitalOX, do Reino Unido. Ela oferece o chamado cyber funeral, que ajuda familiares a remover os dados de um ente próximo. Eles atuam sob leis federais que já garantem esse tipo de direito à população. Em 2018, ela realizou 80 remoções – 25 delas precisaram ir ao tribunal após o Google se recusar a excluir.
A companhia britânica realiza dois tipos de velório. O primeiro, mais simples, dá o controle sobre as contas para a família do morto. Já o segundo é para casos em que os vestígios digitais criam uma imagem negativa tanto para o falecido quanto para os seus parentes. Para isso, eles entram em contato com buscadores como o Google para diminuir os resultados de pesquisa sobre o indivíduo, e cobram um valor mínimo de R$ 1.500.
Na Coreia do Sul, uma das primeiras do tipo foi a Santa Cruise. Fundada em 2008, ela atua na tarefa de limpar as pegadas digitais de alguém, sobretudo vítimas de revenge porn (quando ex-parceiros compartilham vídeos íntimos como forma de vingança). Nos últimos anos, a companhia se especializou em aceitar também pedidos de famílias que queriam tirar da rede dados de um parente morto. Desde 2017, a Santa Cruise realizou, ao todo, 5,5 mil remoções. O funeral coreano custa a partir de R$ 2 mil.
O céu pode esperar
O mercado de enterros online está surgindo, mas ele não é o único no setor pós-morte. O aplicativo Replika é um dos exemplos mais curiosos. Ele constrói um clone digital do seu usuário com uma ajuda da inteligência artificial. O app funciona como um amigo virtual: pergunta como foi o seu dia, o que você está sentindo e quais os seus hobbies. Durante essas conversas, ele analisa seus gostos pessoais para que consiga imitar os padrões de comportamento e, aos poucos, virar uma réplica de você.
A ideia é que o robô fique disponível para conversar com os seus contatos mesmo depois que você se for. Também dá para conectá-lo ao Twitter ou ao Facebook, o que deixaria a Replika ainda mais afiada.
A programadora russa Eugenia Kuyda desenvolveu esse programa após a morte do melhor amigo, em 2015. Ela usou toda a memória digital do colega para alimentar um algoritmo de chatbot (tecnologia que simula respostas – como a Siri, do iOS).
A empresa sul-coreana Elrois está desenvolvendo um aplicativo que dá um passo além. É o With Me. Além da inteligência artificial, ele trará o rosto do falecido renderizado em 3D, de modo que cada “conversa” seja tão vívida quanto uma chamada de vídeo. Parece Black Mirror. E é mesmo. No episódio “Volto Já”, da segunda temporada, a protagonista usa um software assim para matar a saudade do marido falecido.
Com a evolução da inteligência artificial, e o fato de que boa parte das nossas vidas já acontece online, não é impossível que sistemas assim um dia se tornem indiscerníveis de uma pessoa real. Mas, claro, sempre vai faltar alguma coisa. E você sabe o que é.
Como escolher um herdeiro digital
Saiba preparar suas redes sociais para quando você não estiver mais por aqui.
Em “Configurações > Gerenciar conta”, escolha um contato herdeiro, que cuidará da sua página de memorial, ou peça para que a rede exclua o seu perfil após o falecimento.
O jeito mais fácil é entrar nas configurações da sua Google Conta e, na aba de pesquisa, procurar por “Gerenciador de contas inativas”. Nas opções, dá para escolher a partir de quanto tempo seu perfil deverá ser considerado inativo.
Só é possível remover o seu perfil após o pedido de um familiar ou contato próximo, feito por meio de um “Formulário de Privacidade”. Por ora, melhor deixar alguém avisado à moda antiga. (Por Rafael Battaglia – Superinteressante)