No Brasil, é uma questão de tradição, que não tem nada a ver com o título acadêmico. Em outros países, porém, só se pode exercer a Medicina após obter o equivalente a um doutorado.
Longa história. Vamos começar pela etimologia da palavra “doutor”. Ela vem do latim doctor, que significa “aquele que ensina” ou, simplesmente, “professor”. Esse sentido se mantém em português, oculto na palavra “docente”, que é um jeito chique de dizer “professor” e geralmente aparece na expressão “corpo docente”. A palavra doctor era uma variação do verbo docere, que significava “ensinar”. Ou seja: era como se doctor significasse, ao pé da letra, “ensinador”.
Até o século 11, na Idade Média, não existiam universidades ou títulos acadêmicos formais, e a palavra doutor, que se espalhou pela Europa de carona no latim, era empregada de maneira intuitiva, para se referir a pessoas com algum estudo, geralmente clérigos católicos (a Igreja Católica detinha o monopólio do conhecimento no oeste da Europa nessa época). Gente que sabia ler era coisa rara. A palavra só começou a ganhar novas acepções com a fundação das primeiras universidades.
Com elas, surgiu o título philosophiae doctor (“doutor em filosofia”, mais conhecido pela sigla PhD). É importante notar que a palavra “filosofia”, nessa época, tinha uma acepção bem mais ampla, próxima ao significado original da palavra em grego, que é “amor ao conhecimento”. Os PhDs, então, eram os especialistas máximos em física, ou matemática, ou ciências sociais, ou quaisquer outras áreas que envolvem teoria e pesquisa, e não o exercício prático de uma profissão (como no caso de advogados, médicos e teólogos, por exemplo).
É daí que vem o título de doutorado concedido aos cientistas de hoje, independentemente deles serem especialistas em biologia, física, química etc. O título de doutorado é concedido após o candidato demonstrar que é capaz de conduzir uma pesquisa original em sua área de especialidade (em geral, isso significa comprovar ou refutar uma hipótese seguindo o método científico) e então defender essa pesquisa diante de outros doutores.
O hábito de chamar esses doutores de “doutor” não pegou, nem no Brasil nem na maioria dos outros países. Ninguém chama Stephen Hawking de doutor – ainda que ele seja autor de uma tese de doutorado –, mas todo mundo chama Dráuzio Varella de Dr. Áuzio, ainda que ele não tenha um doutorado. O que aconteceu?
Aí depende do país. Nos EUA, a faculdade de medicina não funciona exatamente como a nossa. Os alunos já saem do curso, que é uma espécie pós-graduação, com o título MD (medical doctor), que é um grau de formação equivalente a um PhD (philosophiae doctor), mas em uma área de atuação prática. Ou seja: lá a palavra doutorado não tem uma acepção única. Doutores de áreas práticas e teóricas tem que trilhar passos diferentes em suas carreiras. Uma pessoa formada em direito é um JD (juris doctor), e existe até o DBA, que é tipo o MBA, só que no nível de doutor, em vez de mestre.
No Brasil, o médico não sai da faculdade com um doutorado, porque aqui o curso de Medicina é uma graduação, e não uma pós-graduação. Mas o uso do termo doutor para se referir a alguns profissionais liberais, como advogados e médicos, vem da época em que os ricaços mandavam os filhos estudarem em faculdades europeias. Eles voltavam “doutores” no jargão popular, como um meio de distinguir as classes sociais e demonstrar respeito. Muitos médicos e advogados, hoje, negam o título por causa de seu passado pernicioso, e pedem aos clientes que não sejam tratados desta forma.
Algumas faculdades europeias do século 19 de fato funcionavam nos moldes americanos e formavam médicos e advogados já “doutores” no sentido de que concediam títulos equivalentes à pós-graduação. Mas isso não era uma regra. Na prática, o termo se consagrou no Brasil por tradição. Uma tradição tão sólida que um decreto assinado por D. Pedro I em 1827 determinou que aqueles que concluíssem os cursos de ciências jurídicas ou sociais no Brasil poderiam ser considerados doutores. No final das contas, doutor ainda significa professor: alguém que sabe coisas, não importa o título.
Pergunta de José Olimpo, Rio de Janeiro, RJ
Por Oráculo – Superinteressante