Por que bebês de até 2 anos não devem ter acesso a telas

Recomendação feita pela OMS

Uma cena não recomendada até pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas que tem sido cada vez mais frequente: crianças menores de 2 anos com acesso a telas. O vídeo de um bebê estático assistindo TV e depois, quando o aparelho é desligado, brincando e interagindo com o ambiente, choca e mostra exatamente o efeito que TVs, celulares, e outros gadgets exercem sobre as crianças, principalmente nos primeiros 1.000 dias da vida delas.

A primeiríssima infância, composta pela gestação e pelos dois primeiros anos, é indiscutivelmente importante para o desenvolvimento biopsicossocial: neurológico, oftalmológico, nutricional, de habilidades físicas, cognitivas e motoras, além da construção dos vínculos afetivos e com a natureza.

Para se ter uma ideia, uma criança de 2 anos é capaz de fazer 60 mil conexões neurais por segundo. Aos 3, ela já desenvolveu 60% do potencial mental; com 6, já tem 90%.

Marcia Machado, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pós-doutora pela Harvard Chan School of Public Health, frisa que a exposição de bebês às telas pode causar atrasos na sociabilização — que é um dos marcos do desenvolvimento —, além de prejudicar a cognição e a linguagem.

“As crianças aprendem a mastigar vendo os outros fazendo. Assistindo às telas, elas só engolem”, Dagmar Soares, fonoaudióloga e psicopedagoga

Ela cita que a exposição precoce às telas também pode gerar irritabilidade e prejudicar o sono. “A luminosidade azul das telas cria esse efeito que reduz o nível de melatonina , diminuindo a capacidade de a pessoa relaxar. Por isso, a criança começa a ficar muito irritada e vai entrando no nível de comportamento em que não aceita regulação, não aceita o não (para o uso dos aparelhos)”, relaciona a pesquisadora, membro do Núcleo de Ciência para a Infância.

O período dos 1.000 dias é considerado uma janela de oportunidades pelas tantas possibilidades de desenvolvimento. Quem nunca ouviu que crianças são “esponjas”? Elas aprendem também imitando as ações das pessoas com as quais convive.

“Se você der língua para um bebê, ele vai dar de volta. A própria mastigação, as crianças aprendem a mastigar vendo os outros fazendo. Assistindo às telas, elas só engolem”, explica a fonoaudióloga e psicopedagoga, Dagmar Soares, que também é coordenadora do Programa Mais Infância, do Governo do Ceará.

Ela cita Jean Piaget (1896–1980), psicólogo suiço com contribuições relevantes no estudo sobre desenvolvimento infantil, para demonstrar como uma ação cotidiana da grande maioria das crianças contribui para o aprendizado.

“Ele dizia que a criança nunca joga uma bola do mesmo jeito. Ela joga com força, sem força, de mais perto ou longe. E que ver as reações dos adultos — por isso elas gostam tanto de brincar de esconde-esconde —, as expressões dos adultos valem muito para as crianças”, detalha Dagmar.

Pesquisa realizada no Ceará associa a exposição a telas a menores escores de comunicação infantil, resolução de problemas e domínios pessoais e sociais. O estudo transversal de base populacional foi desenvolvido com 3.155 crianças de 0 a 60 meses. Resultado foi publicado em uma revista científica sobre saúde pública do Reino Unido.

Do total, 69% das crianças tiveram um tempo total de tela superior às recomendações da OMS. No caso das crianças de 0 a 12 meses, 41,7% apresentaram algum tempo de tela. Nessa faixa etária, qualquer tempo de tela é considerado excessivo.

“Matéria mais nobre do universo”: como o uso de telas afeta o desenvolvimento cerebral e as consequências a longo prazo

O desenvolvimento cerebral é intenso, mas frágil, salienta o neurocirurgião pediátrico Eduardo Jucá, que atua no Hospital Infantil Albert Sabin. “A tela tem estímulos sonoros e visuais em excesso. O cérebro não está preparado nem acostumado para isso”, detalha.

O sistema nervoso da criança é “a matéria mais nobre no universo” porque tem todas as potencialidades, distingue o pesquisador. “Quando damos um excesso de estimulação passiva, estamos desperdiçando esse potencial”.

“O desenvolvimento se dá pela formação de novas conexões neurais — as sinapses, o encontro entre os neurônios — pelos estímulos certos. A tela leva a criança a um entretenimento passivo. Isso não estimula novas conexões cerebrais. Para isso, precisa de um comportamento ativo, com interação, manuseio de brinquedos”, frisa.

Eduardo Jucá explica que “as áreas pré-frontais são envolvidas nos processos neurais mais sofisticados, como planejamento, controle de impulsos, execução de projeto — são funções executivas”.

Estímulos excessivos impedem que esses processos se desenvolvam da maneira adequada e podem gerar prejuízos a longo prazo, segundo o neurocientista: “Na infância, adolescência e até na vida adulta, (pode gerar) indivíduos com problemas emocionais, cognitivos, de planejamento, de memória, justamente por dificuldades nesse período”.

Um ponto fundamental é o desenvolvimento da criatividade e o brincar. “Nesse momento, a criança vai construir novas conexões neurais e vai ficando com uma estrutura mais complexa, apta para as funções que vai exercer. Brinquedos com cores, formatos diferentes, que ela seja estimulada a fazer pintura, encaixe, associação”.

“A tela leva a criança a um entretenimento passivo. Isso não estimula novas conexões cerebrais”, Eduardo Jucá, neurocirurgião pediátrico

Ele destaca que a formação do vínculo entre a família e bebê “não é só bonita do ponto de vista afetivo, mas do desenvolvimento cerebral”. “Com o processo de formação de vínculo mãe e bebê, que se desenvolve desde a gestação e continua com o toque, contato visual, amamentação, cheiro. Isso tudo é importante para o bebê se sentir mais seguro, reduzir sensações de estresse e o cérebro poder se desenvolver de forma mais adequada”, pormenoriza.

Marcia Machado, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da UFC, avalia que a providência mais urgente diante desse cenário é “voltar a fazer com que haja contato das pessoas não com a máquina, mas com a natureza e a natureza é gratuita”.

“O que a gente espera é que sejam tomadas providências para que políticas públicas sejam instituídas, porque senão terá consequências a longo prazo, no máximo 20 anos. A gente vê feitos tanto na saúde, como na economia, na questão da memorização do próprio trabalho”, alerta a professora.

Estímulo gerado pelas telas é comparado ao vício

A tela, quando em excesso, induz o que Eduardo Jucá chama de “circuito da gratificação cerebral, do prazer”. Esse mecanismo, o mesmo que ocorre no vício em substâncias, ativa a via mesolímbica do cérebro, também chamada de via de recompensa.

“Como acontece com os jogos de azar. Se a vontade não é satisfeita, gera ansiedade. A criança se encanta pela tela, mas desenvolve uma irritação quando quer o contato com a tela e não tem. Vai desenvolvendo uma dependência”, detalha o neurocirurgião.

O neuropediatra alerta que algumas funções cerebrais correm o risco de serem seriamente comprometidas, principalmente a concentração e a atenção.

“Os estímulos fáceis, disponíveis o tempo todo e que tiram o foco podem gerar diminuição da atenção e isso pode ser associado, nos casos mais graves, ao Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH)”, diz.

Riscos de má formação postural e fadiga muscular

Enquanto consomem conteúdos em telas, via de regra, os usuários ficam estáticos. A fisioterapeuta Mariana King Pádua, especialista em ergonomia digital e mestra pelo Instituto de Psiquiatria (Ipub) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), frisa que nos primeiros meses de vida, o desenvolvimento da coluna vertebral exige movimentações do corpo que o bebê realiza instintivamente.

“Quando você coloca a situação em que ela fica estática, prejudica o desenvolvimento da coluna vertebral e cria um vício postural já no processo de formação”, diz.

Ela explica que as pessoas que usam muito celular e tablets, por exemplo, acabam baixando muito a cabeça. Com isso, a cabeça sai do eixo, algo conhecido vulgarmente como “pescoço de texto”. “O adulto, com a coluna formada, tem problemas, avalie para quem está em formação. Vai calcificando em posição errada”, alerta Mariana King Pádua.

Quando a cabeça é projetada para a frente para olhar a tela, ela sai do eixo do pescoço e isso aumenta a pressão muscular para que ela seja sustentada. Com a frequência, isso pode gerar fadiga muscular e causar um desalinhamento, explica a especialista.

“A modificação da cervical, sem o desenvolvimento correto, afeta os estímulos e a coordenação motora. Fica com estímulo repetitivo do mesmo movimento, ao invés de variar”, avalia a fisioterapeuta. “Em bebês está se construindo uma formação corporal envelhecida cedo. Ao invés da formação, ocorre uma deformação corporal”, ela resume.

Uso de telas tem causando aumento de miopia entre crianças

O primeiro momento em que um recém-nascido desenvolve o contato ocular é ao ser amamentando. O alcance possível dos olhinhos é de até 30 cm, distância quase exata entre o peito da mãe e seus olhos. A visão é, dentro desses 1.000 dias, uma das funções mais impactadas pelo uso de telas.

O problema mais recorrente pode ser a miopia, quando o olho cresce mais do que o normal. “E a tela muito perto do olho estimula esse crescimento. Quanto menor a criança tem miopia, o risco é de ser ainda maior quando adulto”, explica a médica oftalmologista Paloma Verçosa.

A médica detalha que a imagem se forma atrás do olho e, quando vemos alguma tela com proximidade, os olhos recebem sinais de que precisam crescer para vê-la. “O mais ‘normal’ é que as crianças tenham hipermetropia, porque o olho da criança é pequeno”, afirma. E um dos principais fatores de proteção são as atividades ao ar livre. Isso porque a exposição solar regula os níveis de dopamina no olho, um neurotransmissor que ajuda a controlar o crescimento exagerado do olho, contextualiza a oftalmologista.

A recorrência de casos de miopia em crianças tem aumentado, destaca Paloma, principalmente as mais novas, entre 4 e 5 anos. “Precisa considerar também a questão genética, muito comum. Altos graus de miopia, acima de 6 anos, podem causar descolamento de retina, catarata e glaucoma, que podem levar à cegueira”, acrescenta.

Outro problema que a proximidade da tela dos olhos pode causar em crianças é o estrabismo. “Quando olhamos de muito perto, nossos olhos fazem um movimento de convergência, se aproximando do nariz. Isso acontecendo repetidas vezes pode ocasionar o estrabismo”, ressalta a médica oftalmologista.

Os efeitos negativos sob a visão têm sido temas de muitos estudos na atualidade, porque a tendência é realmente aumentar, principalmente, os casos de miopia. O tratamento, segundo Paloma, é feito com colírios de concentração variável, manipulada, além de óculos com lentes que ajudam a controlar o crescimento dos olhos.

Como o uso de telas prejudica a relação dos bebês com os alimentos

Já há estudos demonstrando que o uso de telas aumenta o consumo de alimentos ultraprocessados. “As estratégias são muitas. Como crianças pequenas não sabem ler, a indústria usa de todas as formas para atrair, como músicas, cores, personagens infantis que despertam o desejo das crianças e que os pais acabam aderindo”, explica a nutricionista Juliana Vieira de Castro Mello, que integra o Observatório de Epidemiologia Nutricional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

De forma mais específica, nos primeiros 1.000 dias, a introdução alimentar — que acontece normalmente aos seis meses de vida —, tão importante para construir os hábitos alimentares daquele futuro adulto, pode ser intensamente prejudicada. “É orientado que a criança preste atenção no que está comendo, que perceba o sabor, a textura…é percebendo isso que ela vai descobrir os alimentos, o que gosta ou não, e aprender os sinais de fome e saciedade”, afirma Juliana.

A janela de oportunidades, frisa a nutricionista e pesquisadora, precisa ser aproveitada. Para isso, é necessário conhecimento. “É importante trazer, além da responsabilidade dos pais, a necessidade de políticas públicas. Principalmente em relação ao marketing e à publicidade, porque hoje as redes não têm nenhuma regulação. Estratégias de educação nutricional, a nível individual e coletivo”.

A realidade dos cuidadores: impacto de questões sociais

Embora seja a recomendação das entidades de saúde, criar uma criança sem exposição às telas até os 2 anos, nos dias de hoje, é um enorme desafio. Neurocirurgião pediátrico Eduardo Jucá pondera que é preciso ter muito acolhimento com a família, principalmente com as mães.

“Você não pode adotar uma postura meramente de condenação. É exigido um nível de cuidado e trabalho muito intenso e, muitas vezes, a mãe não tem suporte para fazer uma refeição. Não adianta só ditar regras e condenar. É preciso uma rede de apoio e suporte à mãe e à família para que seja possível não preencher o tempo da criança com telas”, alerta.

Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, alerta que “em uma sociedade patriarcal como a nossa, as mães são as principais culpadas, implicadas”. “A gente sabe que, no Brasil, por exemplo, muitas mães não têm condições de ofertar para os seus filhos outras possibilidades, seja espaço na natureza, espaço qualificado, tempo qualificado”, aborda.

Ela defende que o debate não pode ser realizado apartado “de um contexto mais amplo de luta por conquista de políticas públicas para as crianças e para as mães, para quem cuida dessas crianças”. “Muitas vezes falta creche, o tempo de trabalho dessas mães é muito exaustivo e acaba faltando esse tempo e Uma série de outros recursos para que as crianças estejam longe das telas”, aborda Maria Mello.

As muitas possibilidades do brincar

Liliana Ripardo, assistente pedagógica do Espaço Mais Infância , orienta que algumas atividades que ajudam no desenvolvimento da criança têm baixo custo, são feitas com materiais de fácil acesso. Tiras de papel seda podem ser brincadeira, atraem a atenção pela cor, textura e estimulam a imaginação. Podem ser chuva ou fogueira, a depender da cor e do que a criatividade dos bebês e cuidadores mandarem.

“Você pode deixar a criança no tatame, no tapetinho ou no chão mesmo, pode usar até um lençol pra criança não ficar só no chão, com travesseiro. Coloco atividades simples para ela fazer, (de forma) que não vá gerar riscos e que eu possa estar olhando enquanto estou fazendo outra coisa”, compartilha, também, sobre a experiência pessoal com a filha.

A tentativa de uma criação “zero telas” foi conversada na família de Liliana. Algumas práticas adotadas foram ligar a televisão apenas quando a bebê de 11 meses estiver dormindo ou colocar o carrinho de costas para a TV, além de tentar ao máximo não mexer no celular quando estiver cuidando dela.

“Claro que às vezes é difícil, cansativo. A gente faz aquilo que é possível, mas eu acho que, com um pouquinho só de esforço, dá certo. Vai adaptando aos poucos”, compartilha. Cantar e escutar músicas também podem ser um momento de diversão compartilhada, com atenção para canções que ensinam sobre a natureza, o alfabeto, os sentimentos.

O cuidado com uso de telas também faz parte da rotina de Alessandra Queiroz, 40, e do esposo, pais da Lara, de 1 ano e 9 meses. “Eu entendo as famílias que têm dificuldade porque é muito puxado ficar sozinha com uma bebê. É cansativo, mas o benefício é muito grande”, diz a fonoaudióloga. Bola, bonecas, brinquedos de música e de encaixe são os atrativos preferidos da pequena.

Nascida no auge da pandemia da Covid-19, Olga, de 2 anos e 2 meses tem o acesso às telas regulado pelos pais. “O isolamento foi absurdo desde o parto, a gente não teve rede de apoio. Foi impossível tirar porque era o nosso contato com a família”, conta o pai Mateus Uchôa, 36, professor.

Ela observa que o contato natural com as tecnologias é um salto da geração atual. “Eu procuro compensar, trazer em espaços com dimensão lúdica, interação com outras crianças, espaços verdes, parques, praias. Mas não vejo uma infância totalmente fora da tecnologia”, pondera.

No momento da refeição, por exemplo, a família de Olga preza pela atenção à alimentação. “Alguns bebês comem distraídos na tela sem noção do que tão mastigando. A gente criou esse contexto. Ela se concentra naquele momento, acho que isso é importante”, diz Mateus.(Correio)

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