Saiba como bumbum masculino virou tendência em novelas

Nudez masculina nas novelas vem ganhando corpo

A novela se chama “Todas as Flores”, mas, a julgar pelos primeiros capítulos, não seria exagero se ganhasse o apelido jocoso de “Todas as Bundas”. A trama de João Emanuel Carneiro para o Globoplay chegou confirmando uma tendência: o bumbum masculino está em alta na teledramaturgia nacional.

Nos cinco primeiros capítulos, que estrearam na plataforma de streaming no último dia 19, três “derrières” de atores já desfilaram na tela. O de Humberto Carrão, que faz o mocinho Rafael, apareceu de ladinho, mais contido; o de Nicolas Prattes, que vive o sofrido Diego, numa cena dramática, quando o personagem foi preso; enquanto o de Caio Castro, que interpreta o malandro Pablo, estava lá despudorado, em uma cena de sexo num banheiro com vista para o mar. Mais devem vir por aí.

Eles se juntarão também ao traseiro de Chay Suede, na pele do confuso Rui de “Travessia”, que foi um dos destaques da primeira semana de exibição da novela das 21h da Globo. Após ser mostrado livre, leve e solto -e ainda levando uma bela apertada- o bumbum do ator rendeu tanto assunto nas redes sociais que virou até notícia em sites especializados.

Tudo bem que nudez masculina na telinha não é novidade desde que Tony Ramos apareceu como veio ao mundo na primeira versão de “O Astro” (Globo, 1977). Porém, é um movimento que vem -por assim dizer- ganhando corpo.

Mesmo mais contida que a versão original, exibida pela extinta Manchete em 1990, o remake de “Pantanal”, exibido pela Globo até outubro, não deixou de ofertar cenas do tipo -embora o público tenha sido mais presenteado com a nudez posterior dos atores nas redes sociais, onde pipocaram imagens deles tomando banho de rio sem roupas entre uma gravação e outra.

Isso sem falar em “Verdades Secretas 2”, cujo enredo foi praticamente engolido pelas numerosas cenas de sexo. Disponível no Globoplay desde o ano passado em versão mais apimentada, a novela está sendo exibida na TV aberta atualmente com cortes, mas ainda assim com uma ou outra bundinha na tela.

A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, autora de vários livros sobre relacionamentos e sexo, diz que, mesmo com a “moda” das cenas com nádegas à mostra, é difícil dizer que elas viraram uma “preferência nacional”, status que o bumbum feminino teve por muito tempo no Brasil. Pelo menos não a ponto de tornar uma Rita Cadillac ou uma vice-Miss Bumbum, como Andressa Urach, famosas.

“A atração que a mulher sente por determinada parte do corpo masculino é um mistério”, comenta à Folha de S.Paulo. “Uma pesquisa mostra que apenas 1% das mulheres se sentem atraídas por homens com músculos avantajados. A maioria prefere homens menos musculosos, vestidos, em vez de nus, e nega ser obcecada pelo tamanho do pênis. Um terço das mulheres cita as nádegas, pequenas e firmes, como a característica visualmente mais excitante nos homens.”

Ela lembra que, de modo geral, o sexo feminino é menos induzido pelo visual que o masculino. “Durante muito tempo, o mais importante para o homem foi a mulher com belo corpo, e para a mulher o homem que a protegesse”, conta. “Isso não é difícil de entender. Desde o surgimento do sistema patriarcal, há aproximadamente 5.000 anos, a mulher não tinha meios de sobreviver.”

“Atualmente, as mulheres dão sinais de não estarem dispostas a continuar desempenhando um papel passivo”, afirma. “Apesar de a maioria ainda desejar relacionamentos românticos, pesquisas do sexólogo americano Jack Morin mostraram que, quando se trata de produzir excitação sexual, o sexo explícito é o que deixa as mulheres com mais desejo, como acontece com os homens.”

Essas mudanças seriam resultado do espaço que as mulheres conquistaram na sociedade. “A partir da pílula anticoncepcional, que abriu caminho para os movimentos de contracultura, o movimento feminista permitiu que as mulheres reivindicassem os mesmos direitos dos homens”, avalia. “Se eles podem se deliciar com nossos corpos, por que não podemos fazer o mesmo?”

Para Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela USP (Universidade de São Paulo), a profusão de nádegas de fora que tomou as telas passa por questões sociais e antropológicas. O pesquisador acredita que só mesmo na virada dos anos 1990 para 2000 é que o bumbum masculino começou a se fortalecer como estética -até nas academias de ginástica, onde malhar os glúteos não era comum até então.

“Foi-se naturalizando os inúmeros aspectos do desejo humano, foi-se compreendendo que o desejo é amplo, irrestrito e muito particular, e que cada um tem o direito de expressar a sua sexualidade como bem entende”, avalia. “Se a mulher pode consumir o que bem entende, se as pessoas têm desejos plurais, então aquilo que você vai mostrar também pode ser pluralizado. Não tem por que ficar preso a um quadro heteronormativo.”

Além disso, mais recentemente, houve a entrada de um novo player: o streaming. Em séries e minisséries que você pode assistir quando e como quiser, é mais fácil introduzir esse tipo de cena. Com a concorrência, a bunda acabou também mais descoberta na TV aberta.

“É natural que toda essa gama, essa pluralidade de desejo, venha à tona em empresas que precisam do consumo, que é a base de tudo”, diz. “O mercado vai começar a atender o desejo dessa mulher, e o homem vai começar a se exibir mais. A produção audiovisual é o grande retrato da sociedade.”

Mesmo assim, trata-se de um considerável avanço se considerarmos a época do surgimento da TV, nos anos 1950. “A bunda masculina era vista com extremo preconceito porque colocava em xeque a masculinidade”, avalia. “Se o homem que ia fazer teatro já era visto com suspeita, imagina então mostrar a bunda… Era pura viadagem.”

Ele lembra que a carreira de intérprete, tanto para a mulher quanto para o homem, era muito ligada à prostituição e à promiscuidade. Por isso, em um esforço para que o trabalho do ator ganhasse validade, o corpo não era mostrado -fosse nos palcos ou nas telas.

Com o advento da pornochanchada, os bumbuns começaram a dar as caras no cinema. No teatro, eles começaram a brotar em peças mais popularescas. Mas, na televisão, permanecia o tabu. Até porque a censura começou a acompanhar de perto as produções. “O erotismo e a libido geram uma revolução porque são libertadores, cada um exerce o prazer do jeito que bem entende”, observa. “A censura tinha medo disso.”

Com o declínio da ditadura militar, no final dos anos 80, é que o o corpo começou a ser mais explorado na TV. Em 1987 o bumbum do modelo Vinícius Manne causou furor na abertura de “Brega e Chique” (Globo). “Você não imagina o escândalo que aquilo foi”, conta o estudioso. “Naquela época parecia que era um marciano, que homem não tinha bunda.”

Depois, vieram as experiências da Manchete, com a primeira versão de “Pantanal” e tramas como “Corpo Santo” (1987) e “Kananga do Japão” (1989). “Era uma emissora despudorada, que fez muito sucesso, criou um caminho”, avalia. “Mas também não dependia tanto de audiência.”

De lá para cá, as bundas masculinas foram tomando as novelas aos poucos, com cenas esparsas em uma ou outra produção da faixa nobre e com as produções dos horários mais tardios ampliando os limites do que se podia mostrar ou não mostrar -o que agora foi intensificado pelo streaming. “Eu só lamento que a pornochanchada tenha sofrido tanto preconceito, porque muito do que faziam à época estou vendo hoje, de forma mais elaborada”, diz. (Dol)

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