Enquanto carros andam lentamente no asfalto que emoldura as margens do Dique do Tororó e motoristas contemplam a paisagem ou reclamam do preço da gasolina, Valério Santos amassa o pão molhado com farinha para mais uma tentativa de fisgar um bom peixe na água escura. Ele tem mais urgência do que um tanque de combustível na reserva. Em casa já não tem mais nada pra comer e ele precisa pescar alguma coisa para matar a fome da esposa e quatro filhos. No estado em que 1,8 milhão de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, Valério se tornou mais um entre dezenas de pessoas que não enxergam mais o Dique como local de lazer e diversão. O cartão postal virou um meio de sobrevivência por meio da pescaria.
Basta abaixar o vidro do carro e dar uma olhadinha. É muita gente pescando. E não é por lazer, como costumava ser. É uma forma que algumas famílias encontraram em meio à crise. “A fome não espera e tenho quatro cabeças para alimentar. Estou sem emprego, minha esposa também. Ficar em casa passando fome que não vou. Estamos vindo quase todos os dias pescar no Dique para almoçar e jantar. O Dique que está alimentando minha família”, disse Valério, de 37 anos, que já teve uma visão diferente do cartão.
Em 2019, antes da pandemia, ele era frentista de um posto de gasolina e sua mulher tinha um trabalho fixo de serviços gerais. “Vinha todo domingo com meus filhos pescar no Dique, mas por diversão. Era uma felicidade. Tanto que a gente brincava quem pegava mais e jogava o peixe novamente na água. Não levávamos nenhum, era só por diversão. Hoje, jogamos apenas os pequenos. Os maiores nós levamos para comer”, lembra Valério, enquanto pesca com sua companheira, Jamile dos Santos, além de seus dois filhos Jonatan, de 9 anos, e Gabrielli, de 6. A mais velha, Maria Júlia, de 14, ficou na casa deles, no Engenho Velho de Brotas, tomando conta do mais novo, de 1 ano e 10 meses. Com a covid, ambos perderam o emprego e atualmente vivem com o auxílio emergencial.
Jamile garante que sua família não é a única que hoje tem o Dique como meio de matar a fome. “Não tem dia, nem hora. Vem gente de todos os lugares de Salvador para pescar e comer. Alguns são de Cajazeiras, outros de Mussurunga, até quem perdeu a moradia. Alguns também tentam vender para comprar óleo, farinha e arroz. É o que comemos hoje. Peixe frito do Dique, arroz e farinha. Quando dá ou conseguimos um bico, tem feijão. O que era lazer antes, hoje é nossa sobrevivência”, revela Jamile, enquanto seu filho Jonatan conseguia pescar mais uma tilápia, a quarta do dia. “Hoje tá bom, tem vezes que não conseguimos nada. Os barulhos das buzinas dos carros espantam os peixes para o fundo do Dique. Tem que chegar bem cedinho”, completa.
Casadas, Gislaine Andrade e Lorena de Jesus saem cedinho de Nova Brasília de Valéria. Acordam 4 horas e pegam o primeiro ônibus em direção ao Dique. Elas improvisam suas varas de pescar com galhos de árvores do próprio Tororó. Amassam o pirão de pão e farinha, iniciando mais um dia de trabalho e sobrevivência. A pesca, além de ser uma forma de se alimentarem, complementa a renda, pois ambas estão desempregadas e vendem parte dos peixes.
“Não pode ficar em casa. Cabeça vazia, morada do capeta. Aqui nos distraímos, saímos da violência e ganhamos nosso pão. Ontem vendemos R$ 40 de peixe e ainda levamos para casa. Hoje está muito barulho de trânsito e chegamos tarde. Pegamos pouco”, disse Gislaine, de 42 anos, enquanto sua companheira Lorena pegava um peixe pequeno, mas foi surpreendida por uma garça, que pegou do anzol e levantou voo. “Está cheio de gente vindo matar a fome. Isso sem contar os bichos. Cachorro, gato, pato… Todo mundo querendo comer”, conta Lorena, de 21 anos.
A pandemia, crise econômica e desemprego contribuíram para o surgimento dos novos pescadores do Dique do Tororó. Dados recentes do IBGE apontam que 13,7 milhões de pessoas estão desempregadas no Brasil. São 14,5 milhões de famílias em situação de extrema pobreza cadastradas no CadÚnico (Cadastro Único do Governo Federal).
“O que era um lugar para práticas e pesca recreativa, tem chamado a atenção o aumento de pessoas adultas que passaram a pescar ali ao longo de toda a semana. A quantidade de pessoas tem aumentado significativamente. O que se pode depreender dessa situação é que a séria crise econômica que o país atravessa tem levado ao aumento bastante significativo de pessoas em situação de severa restrição alimentar. Em termos mais diretos: estão passando fome”, explica o doutor em Ciências Sociais e professor da Ufba e Uneb, Gustavo Almeida.
Balinhas e peixe
Não é apenas na pesca. Quem frequenta ou passa com frequência no Dique pode reparar famílias que vendem balas de gengibre no sinal próximo a Lapa. É o caso de Legislaine, que vende bala e, quando diminui o movimento dos carros, pega sua vara e vai pescar no Dique. Sua filha Isa, de 9 meses, fica no carrinho de bebê enquanto a mãe trabalha ou tenta fisgar algum peixe. “Posso dizer que tenho dois trabalhos, mesmo desempregada. Vendo minhas balas e pesco peixe para vender e comer. O Dique dá o sustento de minha família. Amo este lugar mais do que muita gente que vem apenas passear”, revela Legislaine.
Seu Carlos de Jesus, morador do Tororó, vê o lugar se transformando. Há 20 anos ele pesca no local, de tarrafa. “Nunca vi tanta gente pescando como atualmente. Eu sou pintor e pescador do Dique. Vendo meus peixes aqui mesmo no Tororó, mas ultimamente também tenho distribuído alguns peixes para famílias que não sabem pescar e se arriscam aqui. Tem gente que vem pescar com o rabo cheio de cachaça, nem dou trela. Mas estas famílias, poxa, é triste demais”, disse Carlos, que pesca entrando nas águas escuras. “Conheço tudo aqui. Também aconselho e ensino a pescar. Só digo para não entrarem na água. Já vi muita gente morrendo afogado”, completa.
Segundo o último relatório do Inema, de 2019, a qualidade da água do Dique é classificada como boa, apesar de alguns pontos terem uma quantidade grande de oxigênio dissolvido que pode proliferar algas marinhas e comprometer a saúde dos peixes. É bom evitar a pesca na ponta onde fica o cruzamento da Lapa. A água escura e calma do lugar é morada de diversas espécies de peixes, como Carpa, Pacu, Tucunaré, Surubim e Tilápia. Tem até camarão, que serve também como isca para peixes maiores. Sob olhar silencioso e atento dos orixás de ferro, o Dique do Tororó se torna muito mais que um simples cartão postal. Também mata a fome.
Correio 24h / por Moysés Suzart