Sem regra de ‘fair play financeiro’, Arábia Saudita turbina sua liga com bilhões

Ao fazer o gol do título da Copa do Rei pelo mesmo clube, o atacante brasileiro Carlos Eduardo ganhou presente do presidente do clube, o xeque Nawaf bin Saad: um iPhone de ouro com o nome do jogador gravado.

Foto: Reprodução / Twitter / Al Nassr

Roberto Rivellino já contou repetidas vezes sua estratégia. Depois de alguma partida em que havia feito gols ou atuado bem pelo Al Hilal, sempre um príncipe aparecia no vestiário. O meia brasileiro, campeão mundial em 1970, elogiava o relógio usado pelo integrante da família real, que o tirava do pulso imediatamente.

“É seu”, dizia Sua Alteza.

Ao fazer o gol do título da Copa do Rei pelo mesmo clube, o atacante brasileiro Carlos Eduardo ganhou presente do presidente do clube, o xeque Nawaf bin Saad: um iPhone de ouro com o nome do jogador gravado.

Durante décadas, o futebol da Arábia Saudita, com mais atletas amadores do que profissionais, resumiu-se a histórias assim. Chamava a atenção por recompensas individuais que dependiam da boa vontade de uma autoridade. A liga nacional não era conhecida pela estrutura.

“[Os sauditas] não eram jogadores profissionais. Eles ganhavam presentes dos príncipes. Tinha jogador que de repente sumia”, disse Rivellino à Folha de S. Paulo em 2019.

Sem as regras do “fair play financeiro”, que restringem os gastos dos grandes europeus, a liga saudita passa por uma transformação econômica não vista no futebol desde que a China resolveu turbinar seu torneio local, no início da década passada.

Apenas nos salários de Cristiano Ronaldo, Karim Benzema e N’Golo Kanté, dois clubes do país (Al Nassr e Al Ittihad) vão gastar 420 milhões de euros (cerca de R$ 2,2 bilhões) por ano. Outros nomes conhecidos, como Robert Lewandowski e Ilkay Gündogan, também são alvo de interesse.

O maior sonho de consumo escapou. Lionel Messi escolheu morar em Miami e jogar na MLS (Major League Soccer). Ele tinha oferta do Al Hilal para receber US$ 400 milhões por temporada (R$ 1,9 bilhão).

O acordo do argentino nos Estados Unidos tem cláusulas comerciais, como porcentagem em venda de pacotes de TV pela Apple e camisas pela Adidas. Mas apenas de salário ele vai embolsar cerca de US$ 40 milhões por ano (R$ 191 milhões).

“Tudo isso é um sinal da disposição da Arábia Saudita em perturbar a ordem estabelecida do futebol, tradicionalmente controlada pela Europa. Enquanto esses investimentos no futebol e outros esportes são por razões econômicas e sociais, também mostram a habilidade e o desejo saudita de aumentar seu poder internacional”, escreveu Hezha Barzani, diretor de desenvolvimento da Menaaction, ONG que cuida de assuntos relacionados a democracia e direitos humanos.

É uma visão de que o futebol é uma ferramenta de “sporstwashing”, o uso do esporte como arma geopolítica. A Arábia Saudita já havia sido acusada disso quando empresa ligada à família real do país comprou o Newcastle United, da Inglaterra. O mesmo foi direcionado aos Emirados Árabes Unidos, donos do agora campeão europeu Manchester City, e ao Qatar, que realizou diversos eventos esportivos (entre eles, a Copa do Mundo) e controla o Paris Saint-Germain.

Os sauditas ensaiam o mesmo caminho. Estudam apresentar candidatura para sediar, ao lado de Egito e Grécia, a Copa do Mundo de 2030. Também pensam em tentar receber os Jogos Olímpicos de 2036.

O futebol da Arábia Saudita vai passar por processo de privatização, anunciou o governo. Mas, antes disso, os principais clubes foram estatizados.

O fundo soberano do país assumiu o controle dos quatro times mais populares: Al Nassr, Al Ittihad, Al Ahli e Al Hilal. A entidade de investimentos controlada pela família real vai usar a mesma estratégia empregada em outros setores da economia. O Estado vai comandar as agremiações para depois colocá-las à venda para empresas e agências de desenvolvimento.

Dinheiro não falta. O Public Investment Fund, nome oficial do fundo soberano sob a administração da monarquia, vale US$ 620 bilhões (R$ 3 trilhões). É o quinto maior do planeta.

O propósito da família real é aumentar a receita da liga profissional e levá-la a US$ 480 milhões (R$ 2,3 bilhões) em 2030. Atualmente, está em US$ 120 milhões (R$ 573 milhões). O valor de mercado do torneio, projetado, é de US$ 2,1 bilhões (R$ 10 bilhões).

“Se grandes jogadores chegarem, velhos, jovens, serão bem-vindos. Se isso acontecer, o campeonato vai melhorar”, disse Cristiano Ronaldo.

À exceção daqueles com a participação dos clubes de maior torcida, como Al Hilal e Al Ittihad, os jogos não são vistos por grandes públicos. Não à toa, a capacidade dos estádios na primeira divisão varia de 6.000 a 62 mil espectadores.

Reforçar os elencos com estrangeiros nunca foi problema. Pelo regulamento da competição, cada time pode ter em campo até oito atletas não nascidos na Arábia Saudita.

O Al Ittihad, que conquistou o título na última rodada, superando o Al Nassr de Cristiano Ronaldo, tem a melhor média de público: 44 mil pessoas por partida.

O fato de que outros jogadores como Luka Modric (37 anos), Hugo Lloris (36) e Roberto Firmino (31) são cortejados por times do país pode reforçar o apelido dado no futebol europeu para o campeonato saudita, que passa a ter veteranos em busca de um excelente contrato no final de carreira: liga da aposentadoria. (BN)

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