Era o início de um dia de festa. Mandaram subir caixas de fogos de artifício para colorir o céu em comemoração ao aniversário de um dos principais traficantes do Calabar, conhecido como Averaldinho. À meia-noite de domingo (26), a pirotecnia começou. “Pulei da cama, parecia que o mundo tava acabando, não entendi nada”, contou uma moradora do Rio Vermelho, sob condição de anonimato. No Largo do Camarão, no Jardim Apipema, próximo a uma das entradas do bairro do Calabar, os fogos eram disparados sem intervalo.
A queima de fogos foi vista ou ouvida por moradores das redondezas durante 15 minutos em, pelo menos, oito bairros da capital baiana, relataram à reportagem – Calabar, Jardim Apipema, Ondina, Barra e Federação e partes da Graça, Rio Vermelho e Amaralina.
No Twitter, usuários perguntavam uns aos outros se sabiam o porquê do foguetório, que durou o mesmo tempo que o do Festival da Virada Salvador, na passagem de 2019 para 2020. “Tá mais que no Réveillon”, ironizou um morador de Ondina.
Uma moradora da Graça acordou assustada. “Sinto o cheiro de pólvora, mas não consigo ver de onde é”, escreveu ela, na rede social. Como chovia e relampejava em Salvador naquela madrugada, o estranhamento foi ainda maior nos endereços mais distantes, que ouviam, mas não viam o céu colorido, nem aspiravam o queimado.
O Correio 24h conversou com proprietários de três grandes empresas de venda de fogos de artifício em Salvador. Eles assistiram aos vídeos e viram as fotos dos fogos utilizados na festa. O custo médio de uma compra legal para viabilizar 15 minutos de queima de fogos gira em torno de R$ 9 mil, calculou o trio de empresários.
“Isso porque também não houve licença, nem técnicos especializados para fazer o procedimento”, explicou um deles. Quando há, o gasto é ainda maior.
As queimas de fogos precisam ter licença do Corpo de Bombeiros – a da madrugada de domingo não teve autorização, disse o órgão. No âmbito da comércio, podem existir fiscalizações da Coordenação de Fiscalização de Produtos Controlados da Polícia Civil.
Polícia esteve no local
No Calabar, poucos moradores chegavam às janelas – embora a noite tenha sido pacífica. Eles sabiam que queimas de fogos como aquela costumam ser códigos do pessoal do “movimento”, como são denominados os envolvidos diretamente com o tráfico de drogas.
O aniversariante homenageado, Averaldo Ferreira da Silva Filho, responde a dois processos que correm em segredo de justiça, informou o Trbiunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). Ele já foi preso por tráfico de drogas e participação em assassinato. Também já foi detido em duas situações de festa: em 2018, em pleno Carnaval de Salvador, quando descumpriu a liberdade condicional e foi flagrado em cima de um trio de uma banda de pagode; e em 2010, na Micareta de Feira de Santana.
Uma pessoa conseguiu ver, pela fresta da cortina, em média 20 pessoas, entre homens e mulheres, na comemoração. Cinco dos participantes da festa portavam armas, que, alternadamente, disparavam balas para cima. O relato foi enviado à reportagem também anonimamente. A testemunha ligou para a polícia logo depois de avistar a cena.
Por volta da 0h30, guarnições da 12ª e da 41ª Companhia de Polícia Militar (CIPM) receberam a denúncia sobre a festa. Depois de rondas e abordagens, a Polícia Militar (PM) informou que não foi constatado nenhum ato criminoso.
Simbologia da queima de fogos
A queima de fogos tem diversos significados – dentro e fora do ambiente criminoso -, explicou Rafael Alcadipani, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getúlio Vargas.
É um dos recursos de comunicação mais utilizados pelos traficantes, por comemoração ou comando para recuar. O fogaréu é utilizado, por exemplo, quando a droga chega à comunidade; em caso de aproximação ou suspeita de alguma batida policial, para dissipar os criminosos; em demarcação de território; e em festas.
“É uma clara demonstração de poder”, diz Rafael Alcadipani
A pirotecnia dos traficantes demonstra uma atitude de afrontamento. Chamar atenção fora daquele espaço comandado pelo tráfico é uma das formas de demonstrar força. “Por outro lado, não me aparece uma atitude muito inteligente, porque as autoridades, em geral, dão respostas. Isso atiça toda a estrutura de combate ao tráfico para cima dele”, opinou o especialista.
Geralmente, a pirotecnia vem acompanhada do som de balas. Na mesma noite do aniversário no Calabar, houve registro de queima de fogos em Itapuã seguida de tiros, disse um morador do bairro, sob anonimato. A PM também foi questionada se houve denúncia referente ao que foi visto e ouvido no outro extremo da cidade, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.
No dia 2 abril do ano passado, na comunidades da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, o aniversário de Marcinho VP também foi comemorado com queimas de fogos. Ele já cumpria, na época, pena de 48 anos de prisão na Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná, pelos crimes de tráfico de drogas e dois homicídios.
Mas, como explicou Eduardo Ribeiro, historiador e cofundador da Organização Não Governamental (ONG) Iniciativa Negra por uma Nova Polícia sobre Drogas, não se trata apenas de um hábito dos traficantes. Ocorre uma extensão da simbologia.
A queima de fogos é historicamente relacionada a momentos de comemoração, disse Ribeiro. As próprias heranças religiosas – como do Candomblé e do Catolicismo – contribuem nesse sentido. Tanto que um morador do bairro de Ondina acordou certo de que se tratava de uma noite de festa num terreiro de Candomblé próximo. “Precisava essa queima de fogos toda uma hora dessa?”, reclamou, com o quarto iluminado pelos fogos.
O Candomblé, explicou Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia, costuma, sim, fazer as comemorações madrugada adentro. A perseguição religiosa contra adeptos de religiões afro-brasileiras forçava os filhos de santo a render homenagens aos orixás em espaços afastados e horários estratégicos. A tradição permaneceu. “Mas no dia 25, 26, não houve nenhuma celebração”, garantiu Leonel.
Nos dias de comemorações cívias, como no 2 de Julho, dia da Independência da Bahia – e religiosas, como na Lavagem do Bonfim, os fogos também são recursos utilizados para homenagens. O homem que teve o quarto invadido pelas luzes do foguetório encontrou, na internet, um vídeo que mostra, ainda, uma sequência de tiros depois da queima de fogos. Concluiu que não havia religiosidade naquilo que ouvia. Nada restou senão voltar a dormir.
Tráfico e pandemia
A proporção da queima de fogos do domingo mostra, ainda, como o tráfico segue sua rotina em meio à pandemia de coronavírus. “O cenário não alterou, por enquanto, as condições de violência nos territórios criminalizados de Salvador”, avaliou o historiador e ativista Eduardo Ribeiro.
“A questão é que estamos concentrados – a imprensa também – na pandemia, mas essas condições em territórios criminalizados permanecem”, complementou.
Desde o início da quarentena em Salvador, e em outras cidades brasileiras, ocorre, na verdade, uma reconfiguração do mercado ilegal de drogas que só poderá ser analisada minuciosamente no futuro, comentou Ribeiro.
Traficantes chegaram a ordenar, em algumas comunidades, toques de recolher durante o período de isolamento social. A redução de circulação de pessoas envolvidas indiretamente no comércio ilícito de drogas – usuários, por exemplo – é um ponto a ser considerado. O próprio consumo tende a diminuir por esse motivo, explicou o historiador.
A pirotecnia – material e simbólica – dos traficantes apenas reflete que “[no crime] tudo vai, obrigada”, acrescentou Alcadipani. “A tendência é que o aumento de apreensões e essas mudanças tendam a mudar somente a configuração das ações. O tráfico tende a ir mudando sua atuação para roubo de residências, coisas assim”.
Naquela madrugada do aniversário banhado por queima de fogos, dois assassinatos entraram para a estatísticas oficiais, segundo boletim da Secretaria de Segurança Pública (SSP) – um em Águas Claras e outro em São João do Cabrito.
Informações: Fernanda Santana – Correio da Bahia