Em pleno vigor da portaria que exige comprovante de vacina para qualquer pessoa que queira acessar as dependências da Câmara dos Deputados, funcionários da Casa e assessores parlamentares conseguiram uma brecha para trabalhar presencialmente. Eles também se reuniram em um grupo no Whatsapp para trocar conteúdo antivacina e, de acordo com a própria descrição do grupo, “agir na defesa da liberdade” dos não vacinados.
Criado em outubro do ano passado por Evandro de Araújo Paula, assessor da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), o grupo “Não vacinados – CD” conta hoje com 45 participantes.
“Esse não é um grupo antivacina. Estamos unindo os ‘não vacinados’ da Câmara para agir em grupo na defesa da nossa liberdade”, descreveu o criador do grupo.
Apesar da negativa, conteúdos antivacina são os mais frequentes no grupo, que tem como foto de apresentação uma estampa de camiseta com a seguinte inscrição: “Transvacinados (latim: transvacinadus); [s.m.] Pessoa que se sente vacinada em um corpo não vacinado”.
Quem busca nas redes a versão em inglês, transvaccinated, é direcionado a perfis de apoiadores radicais do ex-presidente dos EUA Donald Trump que tentam emular o discurso de pessoas trans para dizer que se sentem imunizados.
Brecha
Apesar de exigir o comprovante de vacina, a portaria em vigor na Câmara abriu brecha para que a exigência não fosse cumprida. Isso porque o texto inclui a possibilidade de se apresentar laudo laboratorial de teste de anticorpos a cada seis meses e considera ainda a chamada imunidade natural, ou seja, pessoas que tiveram a doença.
“O ingresso nas dependências da Câmara dos Deputados de servidores não vacinados e sem imunidade natural dependerá da apresentação, nas portarias dos edifícios, de laudo de teste molecular RT-PCR ou de teste de antígeno para Covid-19, com resultado negativo, realizados nas últimas 72 (setenta e duas) horas”, destaca o texto.
Disque-denúncia
O Metrópoles teve acesso ao grupo e constatou que, em um dos vídeos divulgados, uma mulher reclama da exigência da vacina por parte da escola pública na qual sua filha está matriculada. Ela aponta, que diante do comunicado da escola, teve sua queixa acolhida pelo canal Disque 100, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela ministra Damares Alves.
“Está funcionando muito bem, o atendimento é super-rápido, não tem espera, não tem demora”, elogiou. “Fiz a denúncia, já puxaram tudo no sistema: o nome da escola, do diretor, da vice-diretora”, observou a mãe.
“Eles falaram que é passível de crime, porque ninguém pode ser coagido a tomar a vacina. O Ministério Público vai entrar agora com um processo para investigar o que está acontecendo”, destacou a mãe. “Vamos ver o que vai acontecer, vamos ver quem vai ganhar essa guerra”, ameaçou.
“Minha filha não vai tomar a vacina. Está no meu direito e está no direito dela. E ela vai continuar estudando onde ela quiser e entrar em qualquer lugar que ela quiser, sem ser obrigatório o esquema vacinal”, frisou a mulher.
Código de Nuremberg
No início do mês, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), colegiado da Procuradoria-Geral da República (PGR), solicitou esclarecimentos sobre a disponibilização do Disque 100 para denúncias de pessoas antivacina sobre supostas “discriminações”.
A cobrança por parte do MPF à ministra foi considerada ilegítima. Um dos participantes do grupo sugeriu, então, que Damares apresente o Código de Nuremberg, conjunto de normas elaboradas para regulamentar pesquisas científicas com seres humanos. O documento, emitido após a queda do regime nazista na Alemanha, condena experimentos realizados com judeus na Segunda Guerra Mundial.
“Moleza. Pode começar apresentando o Código de Nuremberg, para quem não conhece”, respondeu um membro do grupo.
“Nem em cachorro”
Em outro vídeo, uma mulher que se diz profissional de saúde atesta não ter tomado às vacinas, porque “nenhuma dessas vacinas tem estudo completo”, segundo ela. “Como é que eu vou tomar um negócio que eu não sei o que vai acontecer dentro de mim?”, questiona, na gravação divulgada.
A suposta profissional ainda é incentivada a comparar as vacinas contra Covid-19 com a testagem de experimentos medicamentosos em animais. “Eu, como empresa, se for testar o experimento em um cachorro, o povo invade a minha empresa. Agora, eu vou usar em gente?”, questionou, usando o argumento de grupos contrários à testagem de produtos em animais.
“Guerra espiritual”
Em meio a vídeos negacionistas, os “transvacinados” da Câmara ainda postaram mensagem do presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Não vamos perder essa guerra, porque acredito em vocês”, destaca Bolsonaro em um discurso no Planalto. Esse trecho também foi compartilhado no grupo. “O bem maior é a nossa liberdade, essa que não se passa de uma geração para outra. Ela tem que ser lutada, dia após dia, nem um passo atrás pode ser dado e nós temos como dizer para nossos filhos e netos que sou pelo entendimento e pela luta de todos nós”, diz o mandatário.
Mensagens divulgadas pela deputada Janaina Paschoal questionando os gastos públicos com as vacinas também foram postadas no grupo.
Veja o post:
Vamos lá, já identificaram uma outra variante: Omicron BA2. Já, já, vão inventar uma nova dose de vacina para combater essa nova variante… e assim vai. Percebem que não terá fim? Nem vou questionar o gasto de dinheiro público nessas infinitas doses… mas, diante do absurdo,
— Janaina Paschoal (@JanainaDoBrasil) February 5, 2022
Essa postagem foi recebida com indignação por parte do grupo. “Se questionar, é negacionista”, reclamou um participante. “Se questionar pode ser preso. Estamos vivendo uma guerra espiritual. Esse povo que não questiona e não enfrenta, como estamos fazendo, vai sucumbir em meio a esse experimento”, escreveu outro participante.
Conteúdos antipetistas, comparando o Partido dos Trabalhadores ao nazismo, também foram divulgados.
Protestos
Além desses, há o incentivo a protestos, como os que tomaram cidades no Canadá e que alertaram outros países para o assunto.
Após as manifestações em Ottawa, liderado por caminhoneiros antivacina, países como França, Bélgica e Nova Zelândia adotaram medidas de proibição e advertência para impedir o avanço das manifestações de caráter contra a imunização.
Outro lado
Procurado pelo Metrópoles, Evandro disse que criou o grupo quando a Câmara passou a exigir o passaporte de vacina de funcionários. Segundo ele, após a brecha que permitiu a apresentação de laudos de imunidade natural, o problema foi resolvido.
O funcionário disse não participar de movimentos antivacinas. No entanto, evitou informar sobre seu atual status de imunização contra Covid-19.
“Eu não estou na luta antivacina. Sou muito bem vacinado, para falar a verdade. Em relação a essa vacina contra a Covid, eu tenho alguns questionamentos”, destacou. “Estou protegido pela lei de proteção de dados, então, não vou responder a essa pergunta.”
De acordo com Evandro, o grupo foi criado somente para tratar da questão dos não vacinados da Câmara dos Deputados, uma vez que só os imunizados poderiam entrar na Casa. “Algumas pessoas não podem tomar vacinas por questão de saúde e outras realmente não se sentem à vontade para tomar. Então, a gente criou o grupo para compartilhar matérias e informações entre funcionários”, relatou.
“Acabou que a situação foi resolvida porque houve uma brecha, permitindo que seja apresentado exames laboratoriais comprovando a imunidade natural. Então, para nós, já está tudo resolvido”, enfatizou.
Fonte: Metrópoles