Baiana quilombola é selecionada para capacitação em Direitos Humanos da ONU

Estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Franciele Silva é moradora do Quilombo Rio dos Macacos

A estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) deu o primeiro passo de representatividade acadêmica para a comunidade onde vive, localizada em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), em 2019, para cursar o Bacharelado Interdisciplinar em Ciências e Tecnologia, inicialmente. No ano seguinte, foi aprovada para Direito, o curso dos sonhos, visto como ferramenta de luta pelos direitos do Rio dos Macacos.

“Quando temos o conhecimento, ninguém pode tirá-lo de nós. Quando ingressamos no judiciário como corpo que vivenciou àquela realidade, nossa atuação é outra. Eu me vejo com uma grande responsabilidade, principalmente, a de ajudar minha comunidade pernanentemente”, pontua.

A entrada de Franciele na universidade gerou incentivo para os outros jovens do quilombo. Depois dela, mais sete pessoas conseguiram acessar instituições de ensino superior, sendo que seis também estudam na UFBA. Dois deles são da família da estudante de Direito: a irmã, graduanda em Farmácia, e o primo, que estuda Design.

Nascida e criada no Quilombo Rio dos Macacos, Franciele faz questão de demonstrar orgulho pela comunidade. “A minha vida está ali, a existência dos meus ancestrais e a do meu povo. Está relacionado diretamente com a minha experiência de vida, desde o meu nascimento até a minha morte. Minha comunidade é tudo para mim.”

A universitária é a única nordestina no programa da ONU que, pela primeira vez, inclui à língua portuguesa e se volta para a comunidade quilombola. Franciele participa do evento ao lado de mais dois quilombolas: Arilson Jesus, representante da comunidade quilombola Vila Miloca, do Rio Grande do Sul, e Juliene Pereira, da comunidade quilombola de Oriximiná, do Pará, além de 44 indígenas escolhidos em vários países do mundo. Franciele enxerga a iniciativa como uma oportunidade de debater as condições enfrentadas pelo Quilombo Rio dos Macacos.

“Nosso povo padece com a ignorância e a exclusão dos espaços de decisão. É culpa do estado brasileiro, que não tem nenhum interesse que o nosso povo conheça essas informações”, denuncia.

Ela soube do programa de capacitação da ONU, após receber uma imagem que apresentava informações sobre o processo seletivo por meio do Whatsapp. Depois de passar por algumas etapas, a estudante recebeu a notícia da aprovação. Ela embarcou para Genebra no dia 24 de junho e só retorna ao Brasil no dia 22 julho.

“Nós temos uma missão muito importante dentro deste programa, que é dar importância e visibilidade aos casos das comunidades quilombolas do Brasil”, diz a estudante.

De acordo com Franciele, o Quilombo Rio dos Macacos enfrenta condições precárias, com casas em situações de risco de desabamento, falta de água potável e iluminação pública, além da disputa com a Marinha do Brasil (MB) na região que, segundo a estudante, pode privar o acesso da comunidade ao rio.

Procurada pelo CORREIO, a assessoria de Comunicação Social do Comando do Segundo Distrito Naval informa que a MB “sempre permitiu, como ainda permite, a passagem regular dos moradores da comunidade e de seus convidados pela vila naval, assegurando o direito de ir e vir, e autoriza o trânsito, pela sua área, de pessoas que se dirijam à comunidade para a prestação de ação ou serviço de saúde ou assistencial (doação de alimentos, material de limpeza, etc), bem como de ambulâncias e viaturas policiais.”

Além disso, a nota afirma a defesa da MB sobre a construção do muro na região por causa da criação de estradas de acesso pelo Governo do Estado da Bahia, alegando “forma legítima de preservação do patrimônio da União e de garantir a segurança da barragem, da área militar e dos militares residentes na Vila Naval da Barragem (VNB)”.

Conflito entre Quilombo do Rio dos Macacos e Marinha

Criado após a doação de terras feita a negros escravizados, na época em que o Brasil era colônia de Portugal, o Quilombo do Rio dos Macacos trava uma briga com a Marinha desde 1960, quando a União iniciou as obras para a construção da atual Base Naval de Aratu.

O CORREIO esteve no quilombo, em 2013, e conversou com Maria Madalena Messias, filha da moradora mais antiga do local, Maurícia Maria de Jesus, que tinha 113 anos na época. Durante a entrevista, ela contou que os avós trabalharam nas fazendas, que os bisavós foram escravizados nas propriedades e que receberam o terreno como indenização dos senhores.

No entanto, as terras foram passadas para o município por causa das dívidas do proprietário da Fazendo Macacos, Coriolano Bahia. A presença de moradores no terreno foi informada, mas não considerada em documento, o que deixou a comunidade em situação de vulnerabilidade.

O município doou a área para a Marinha. Depois de um tempo, as obras da atual Base Naval de Aratu foram iniciadas, assim como a construção da barragem do Rio dos Macacos.

Mais tarde, em 2009, os conflitos avançaram. Neste ano, a Marinha protocolou a primeira das quatro ações de desapropriação de terra, alegando que a maior parte dos moradores do território não eram quilombolas e que teria chegado ao local na década de 80. Após esse episódio, o atrito foi estendido por onze anos.

Apesar da titulação das terras ter sido assinada em 2020, na sede da Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a comunidade continua lutando pelo uso compartilhado dório, a construção das vias de acesso independente e a efetivação de políticas públicas, de acordo com Franciele Silva.(Correio)

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