Em sessão de oito de maio de 1888, de um lado, o então deputado de província, Joaquim Nabuco, defendia a urgência na aprovação de um requerimento para que entrasse na próxima ordem do dia a proposta do governo imperial a respeito do fim da escravidão. De outro lado, o parlamentar conservador, Andrade Figueira, chamava a atenção sobre garantir o formalismo do processo legislativo, sugerindo que a urgência solicitada por Nabuco desrespeitava os trâmites regimentais das comissões. Em meio ao clima acalorado do debate, chegou ao ponto de dizer que o Plenário se convertia em um “circo de cavalinhos”. Nesse momento, o deputado Duarte de Azevedo interfere na fala de Figueira e coloca em evidência o fato de não haver disposição regimental sobre parecer de comissões especiais. Dando sequência à discussão, Nabuco emenda e fala que alguns procuravam minimizar a importância daquela que era, em sua visão, a maior sessão da Câmara dos Deputados, ao desejarem postergar o que era inevitável, ou seja, o fim da escravidão. Sob aplausos de manifestantes no local, finalizou: “Todos estão no gozo da mais completa liberdade e, si obedecem à inspiração do sentimento popular, é porque os escravos, que sofreram durante seculos, somente agora encontram no coração do legislador brazileiro, só agora despertam todas as symphatias a que esses sofrimentos dão incontestavel direito”. Pouco tempo depois, o presidente da Câmara coloca o parecer de Nabuco sobre a urgência em votação e o plenário o aprova. Desse modo, em menos de uma semana, no dia 13 de maio de 1888 era sancionada a lei Áurea que extinguia a escravidão no Brasil. Mas a história política desse país é repleta de desafios permanentes, que se arrastam por séculos, como a integração dos negros à sociedade. Desafios esses que não podem escapar ao Parlamento, responsável por expressar o que há de mais substancial em termos de demandas políticas nacionais. Cerca de cem anos depois, o Brasil aprovava a constituição vigente, apelidada de “Constituição Cidadã”, responsável por assegurar direitos expressivos a diferentes segmentos sociais, inclusive, para a população negra. Às vésperas de sua promulgação, o ex-senador e ex-deputado federal, o intelectual negro, Abdias Nascimento, teve seu projeto de lei sendo arquivado. Nele, Abdias defendia a necessidade de políticas públicas de igualdade racial, que chamou de ações compensatórias (PL 1332/83). Com essa propositura, ele deixava explícito que as políticas universais, embora fundamentais, eram insuficientes para eliminar as desigualdades sociais entre brancos e negros, bem como para combater o preconceito e a discriminação racial no país.
Hoje, celebramos o dia da Consciência Negra no Brasil; embora não seja um feriado nacional, é uma data que nos possibilita dar visibilidade as conquistas e, particularmente, aos desafios a serem superados. Então, podemos indagar: quanto temos a comemorar no dia 20 de novembro? Certamente, essa resposta não é simples. Avanços importantes ocorreram, sendo necessário explicitá-los. Hoje, temos mais consciência de que as diferenças raciais precisam ser celebradas enquanto as desigualdades combatidas, e isso não é produto do acaso, e sim, da organização política da sociedade civil e da atuação institucional de atores sociais negros. Ademais, a produção acadêmica e cultural sobre a temática étnico-racial tem sido crescente, ofertando importantes informações e diagnósticos a respeito da situação dessa população em seus mais diversos campos (econômico, cultural, acesso a políticas públicas, dentre outros). Nesse sentido, é preciso comemorar os avanços nos anos de estudo e no número de estudantes negros nas várias modalidades de ensino. Contudo, também é necessário reconhecer que ainda há uma grande desigualdade a ser eliminada quando se considera, por exemplo, o ensino superior. Ao analisarmos o percentual de pessoas de 25 anos ou mais de idade, em 2016, com nível superior completo, nos deparamos com 22,2 de brancos e 8,8 de negros. De outro modo, quando consultamos o Atlas da Violência, os índices se invertem. Em 2016, a taxa de homicídios de negros é 40,2% enquanto a de não negros chega a 16%. Temos razões para comemorar nesse 20 de novembro, e muitas para continuar a questionar!
Segundo os dados da Agência Senado, antes dos anos de 1980, poucos negros eram líderes em partidos nacionais ou tinham sido eleitos para o Congresso. Para termos ideia, nos anos 1970, podemos contar somente dois deputados federais negros. Ainda que a história desses e de outros atores sociais negros tenha sido caracterizada pela sub-representação no Legislativo, ela também foi marcada pela luta contra o racismo, contra a situação de pobreza e de violência vivenciadas por esse segmento da população brasileira. Ainda sobre a situação de sub-representação política no Congresso, embora em 2018 tenha ocorrido um aumento na quantidade de deputados federais negros (crescimento de 5%), eles ocupam apenas 21 das 513 cadeiras. Essa cifra é irrisória frente aos 75% dos brancos com assento nos próximos quatro anos. É importante frisar que mesmo no nível mais elementar de representação política, isto é, o espaço das câmaras municipais, não são identificados melhores percentuais.
Em 2016, no universo de candidatos a vereador, os negros representaram 9% do total de candidatos. Os pardos, 39,7% e, os brancos, mais da metade. Se a porta de entrada na política ainda é estreita para se tornar candidato, passar pelo crivo das urnas é um desafio ainda maior. Dentre o total de vereadores eleitos, cerca de 5% apenas são negros. Ademais, é necessário explorar melhor esses dados a fim de se identificar as desigualdades regionais no espaço geográfico de norte a sul quando se trata tanto da oferta de candidaturas quanto dos eleitos. Provavelmente existam mais elementos ainda para despertarem o nosso senso crítico.
No final das contas, mais do que o desejo de Nabuco de que a questão dos negros pudesse entrar no coração dos legisladores, talvez ela devesse ganhar, em definitivo, os corações e mentes da população brasileira como um todo, a fim de produzir as mudanças necessárias nas urnas, nas escolas, nos principais postos do mercado de trabalho e por aí a fora. Nos locais onde há, bom feriado! (O Estadão)