Entenda por que ter anticorpos não significa estar protegido do coronavírus

(Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)

Fiz o teste outro dia e descobri que tenho anticorpos. Então, amanhã, vou dar uma longa volta de carro, vou abrir a janela e respirar. Vou respirar no ar da covid-19”. Essa declaração, publicada pela cantora Madonna em suas redes sociais há alguns dias, provocou mais uma polêmica em relação ao que se sabe sobre a pandemia do coronavírus. 

Mas, na verdade, a frase é bem mais do que controversa: revela que, de fato, o desconhecimento sobre o coronavírus – e até sobre como funciona o sistema imunológico das pessoas – ainda é grande. De imediato, é comum imaginar que ter anticorpos significa que alguém está protegido. O problema é que não é bem assim. 

Ter anticorpos não significa que alguém está imune ao coronavírus – e há muitas razões para isso. A presença deles no corpo de alguém revela, simplesmente, que a pessoa teve contato com o vírus e que o organismo reagiu a isso. É diferente da imunidade de fato. 

“Quando nós temos anticorpos, criamos na mente a ideia de que a gente está protegido, mas depende do tipo do anticorpo. O paciente que tem HIV tem anticorpo, já que o diagnóstico é feito pela presença do anticorpo, e isso não quer dizer que ele é imune. E é assim para muitas doenças”, explica a médica infectologista Nilse Querino, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Assim, é preciso ter cautela com os chamados testes rápidos do coronavírus. “Esse é o grande problema de confiar demais nesse teste sorológico que temos hoje. A gente pode estar fazendo as pessoas arriscarem a si e aos outros achando que já estão protegidas”, alerta o imunologista Manoel Barral Netto, pesquisador da Fiocruz e da Rede CoVida e professor titular aposentado da Ufba.

E há praticamente um consenso entre cientistas em todo o mundo: com o coronavírus, é difícil ter certeza sobre qualquer coisa. Justamente por ser uma doença tão nova, com casos registrados apenas desde o final do ano passado, as pesquisas também são recentes. 

Assim, as pesquisas sobre a imunidade ainda têm um longo caminho a percorrer.

“É tudo muito inicial, mas você tem ideias tanto a partir do que já se descobriu sobre o vírus tanto do que se conhece de outras infecções”, diz o infectologista Carlos Brites, professor titular de Medicina da Ufba e coordenador do laboratório de pesquisa em infectologista do Hospital Universitário Professor Edgar Santos (Hupes). 

Tipos de anticorpos
A definição geral de anticorpos é de que eles são proteínas do sistema imunológico que podem proteger o corpo de bactérias, vírus ou mesmo de corpos estranhos. Só que, ao contrário do que muita gente pensa, nem todo anticorpo de fato protege. 

No caso do coronavírus, alguns estudos indicam que provavelmente há dois tipos de anticorpos, pelo menos, envolvidos: os neutralizantes, que são protetores, e os chamados facilitadores, que até acabam prejudicando, porque ajudam o vírus a entrar nas células. 

“É preciso estudar em maior profundidade para saber o que está se passando, mas, só para exemplificar, há uma indicação de que as pessoas que fazem anticorpos muito rapidamente tenham uma doença mais grave. Mas seriam os anticorpos facilitadores”, explica o imunologista Manoel Barral Netto. Um dos desafios, agora, é entender por quais razões isso acontece.

Há grupos de pesquisadores, hoje, desenvolvendo trabalhos para produzir esses anticorpos neutralizantes. Na própria Ufba, inclusive, pesquisadores estão dando início a um projeto, em parceria com a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e a Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), que vai mapear esses encontros de anticorpos. 

A ideia é acompanhar pessoas que se curaram da covid-19 por meses, para ver se terão algum tipo de recaída ou se os anticorpos vão protegê-las, segundo a infectologista Nilse Querino. “A gente já sabe que o indivíduo pode se curar, o que já é diferente do HIV, mas a grande chave é: essa cura da imunidade é duradoura ou temporária?”, diz. 

Existem, além disso, dois tipos de imunidade: além da que é baseada em anticorpos, há a imunidade celular. Na fase aguda de infecção, que geralmente acontece entre sete e dez dias, o organismo produz os anticorpos chamados imunoglobulina M (IgM). Em até duas ou três semanas depois, começam a ser produzidos os anticorpos imunoglobulina G (IgG). 

“A imunoglobulina tipo M desaparece, mas os iGG são de memória. Uma vez que você entre em contato com aquele vírus, esses anticorpos bloqueiam esse vírus. É o mesmo princípio das vacinas”, diz o infectologista Carlos Brites. 

Ainda que fique na memória, a duração dessa proteção depende de cada doença – em algumas, pode ser para a vida inteira; em outras, ela é temporária. 

No SARS-CoV-1, o coronavírus que provocou a epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), em 2003, na Ásia, após um ano, os anticorpos protetores começam a cair. Como consequência, a imunidade é temporária. 

Mutações
É diferente, porém, da mutação que pode acontecer no próprio vírus. O Influenza, que causa a gripe, por exemplo, muda a todo o tempo. É por isso que, a cada ano, uma nova vacina é lançada. 

Em geral, os vírus compostos por DNA, como os da varíola e da herpes, são menos mutáveis do que os de RNA, a exemplo da gripe e do próprio coronavírus. No entanto, como explica Brites, isso nem sempre se aplica. 

“O HTLV é de RNA e é relativamente estável, enquanto o HIV é de DNA e muda o tempo todo. Cada vírus tem suas características e isso tem a ver com o comportamento do vírus. Esse coronavírus é muito novo, mas ele não parece ser tão mutável quanto o da gripe, mas ainda não temos muitos dados”, pondera o infectologista. 

De acordo com ele, o vírus da covid-19 é muito diferente dos demais. “Outros coronavírus, como SARS e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), tiveram surgimento muito rápido. Não foram epidemias que duraram muito tempo. É um comportamento diferente”. 

Já o imunologista Manoel Barral Netto destaca que é preciso que a sociedade entenda, de maneira geral, que não vai voltar à dita “normalidade”. A vida como era antes da pandemia não deve voltar a existir. 

“Se voltarmos para as aglomerações, para ficar sem máscaras e sem lavagem compulsiva das mãos, isso tudo vai ficar com que a doença volte. A história está cheia desses exemplos, como a própria gripe espanhola, de 1918. A segunda onda, que foi entre setembro e dezembro, foi pior do que a primeira, entre março e abril”, exemplifica o imunologista. 

Em abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já tinha divulgado um relatório técnico que dizia que não existem passaportes de imunidade contra a covid-19. 

No documento, que revisou 20 estudos científicos, a entidade destacou que não há evidências de que pacientes recuperados da doença e que possuam anticorpos tenham efetivamente proteção contra uma segunda infecção. Os tais passaportes chegaram a ser cogitados por alguns países como uma possível estratégia para retomar atividades econômicas. 

No futuro, porém, o professor Barral Netto não descarta que exista a possibilidade de um passaporte de imunidade. No entanto, essa situação é distante do presente. “Estava todo mundo confiando no anticorpo. Quando esses anticorpos começaram a não deixar a situação tão clara, agora a coisa não é tão otimista. A nossa esperança é com a vacina, porque induz a imunidade. Enquanto a vacina não vem, a gente precisa ter uma vigilância em saúde muito séria”, completa. (Correios)

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