Guiados por pastores com “vocação para aiatolá”, evangélicos “fizeram por merecer” a má fama tantas vezes lhes atribuída pela sociedade secular.
Quem diz é o reverendo Caio Fábio D’Araújo Filho. Colegas como um então jovem Silas Malafaia o consideravam o pastor número um do país nos anos 1980 e 1990. Com críticas ácidas ao evangelicalismo nacional, o manauara virou persona non grata no segmento e é hoje um farol entre a minoria progressista.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o membro da Catedral Presbiteriana do Rio ataca o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um “déspota perverso” que “caiu como uma luva” nas igrejas, e fala da relação de vaivéns com o amigo Lula (PT).
O nome de Caio Fábio foi atrelado ao dossiê Cayman, emaranhado de fake news para tentar incriminar a cúpula do PSDB na campanha de 1998. Ele chegou a ser condenado pelo fato.
Pastor e político retomaram a amizade na eleição de 2022, e a ideia, segundo o pastor, é conversar para “dissolver esse caroço golpista que Bolsonaro fez crescer”.
O sr. é evangélico desde os anos 1960. O que mudou no segmento de lá pra cá?
Minha avó já vinha presbiteriana desde o final do século 19. A família paterna era católica. Fui batizado em ambas as fés. Voltei à igreja presbiteriana com 19 anos porque tive experiência forte com Jesus, foi uma bomba que explodiu dentro de mim. Pregava para amigos e hippies em Manaus. Isso no [evangelicalismo] histórico.
Do lado pentecostal, era tudo muito fervoroso e aferrado a costumes. Mulher não podia cortar cabelo, usar maquiagem. Homens iam para o culto de terno. Além da gritaria muito intensa. Eu achava muito esquisito, mas sincero. Você sabia que estava lidando com pessoas honestas, que não se metiam com política, cuidavam das suas vidas.
Acha justa uma percepção nem sempre generosa da sociedade secular para evangélicos?
Antes, [pentecostais] se mantiveram nessa linha de discrição. Nos anos 1980, os pentecostais receberam influência profunda de televangelistas americanos, como o Jimmy Swaggart. As mulheres agora se pintam, cortam o cabelo. Pareceu uma evolução. Malafaia, por exemplo, já era filhote do Jimmy.
Tenho que admitir que o olhar da sociedade para evangélicos não é exageradamente negativo. Eles fizeram por merecer no curso dos últimos 40 anos. Desenvolveram-se suficientemente, do ponto de vista numérico e no que diz respeito a ambições políticas e a ênfase que deram no dinheiro, de tal modo que Deus não ouve orações se o indivíduo não fizer sacrifícios financeiros. Existem exceções, mas são infelizmente apenas isso.
Pautas como aborto e LGBTQIA+ sempre foram um ponto de honra no segmento?
Evangélicos foram se tornando cada vez mais fanáticos. O conservadorismo antes tinha a ver com outras coisas, [o pentecostal] que não fuma, não dança, não bebe.
Havia, já no final dos anos 1980, ênfase muito grande em gays. Muitos filhos de pastores começaram a não aguentar mais viver de segredos e passaram a frequentar boates gays. Aí as igrejas levantaram esse assunto.
Quando o neopentecostalismo se estabeleceu, muita gente me disse que imitaria a Igreja Universal com menos agressividade, para não assustar os crentes originais. Mas foi ali que a canoa emborcou. Uma tragédia anunciada.
A esquerda sabe dialogar com o grupo?
A meu ver, não. Até porque não dá muito para dialogar, se você for uma pessoa de esquerda lúcida, com quem propõe o oposto disso. Bolsonaro mudou a cabeça dos evangélicos? Óbvio que não. Evangélicos estavam preparados para uma pessoa como ele, só não tinham coragem explícita de declarar isso. Me lembro bem, quando começou o processo de abertura política, eu ainda era um líder cristão respeitado no país inteiro… Ouvi muitos pastores dizendo que estavam muito preocupados com essa tal de redemocratização, porque estava tudo muito bom com os militares.
Muitos líderes têm vocação para aiatolá, coronelismo, sempre estiveram nessa situação de despotismo comunitário. Um cara como Bolsonaro, um déspota perverso e insano, caiu como uma luva. Não precisa ter lógica. Basta alguém chegar tremendo e dizer “o Senhor me deu uma ordem” que todo mundo corre atrás.
Por que evangélicos votaram em massa no Bolsonaro?
Ele prometia dar todos os favores à igreja evangélica. E ainda introduziu a história do armamento. Evangélicos nunca deram ênfase a isso, civil com arma diziam logo que era coisa do Diabo. Liderei a campanha do desarmamento em 1994. O público que mais apoiava era o evangélico.
O sr. teve uma amizade de anos com Lula.
A gente se conheceu no Congresso, início dos anos 1990. Eu estava organizando um evento da Associação Evangélica Brasileira. Começamos a nos encontrar para almoços, reuniões de seis, sete horas. Lula me assegurou, desde o primeiro momento, ser uma figura muito mais cheia de ideais do que de ideologias.
O que houve de ruim entre nós foi a entrada da política. Em 1998, veio uma pessoa da Flórida, que me conhecia de lá e conhecia Lula daqui. Chegou na Fábrica de Esperança [ONG de Caio] com uma história de dossiês, vantagens e possibilidades. Ele quis me envolver de qualquer modo. Praticamente todos os candidatos vieram me procurar porque aquele cara falou que era eu que sabia da história.
Aquilo criou um imbróglio que acabou prejudicando meu relacionamento com Lula. Mas votei nele em 2002.
Voltaram a se estranhar?
Comecei a falar publicamente dele em 2007, quando senti que havia alguns desvios do propósito original, que o acolhimento mundial tinha mexido um pouco com a cabeça dele. Mas, no meu coração, nunca desgostei do Lula.
Quando veio a Lava Jato, vi que aquilo iria longe, com boas razões e outras nem tanto. Fiz uma declaração. Deltan Dallagnol [então procurador da operação] na mesma hora mandou WhatsApp me chamando para conhecer a Lava Jato em Curitiba. Fui. Perguntei se ele via Lula com condições de ser preso. Ele disse que não, se os fatos que tivessem fossem apenas aqueles. Quando vi o julgamento do Moro, levei um susto. Um total absurdo. Fui perdendo a fé.
No dia de Lula ser preso, cresceu imensamente no meu conceito outra vez. Não fugiu, entrou na cadeia e fez o melhor que pôde. Quis visitar, mas achei que PT iria julgar como espécie de oportunismo.
Retomaram relações, certo?
Na eleição, amigos da democracia, sabendo da minha amizade com Marina Silva [eleita deputada e hoje ministra], me pediram [para fazer uma ponte entre ela e Lula]. Liguei, e ela disse: “Ele sabe como me achar, tem o meu número”. Eles se encontraram, foi muito bom. Ela agradeceu e disse que queria fazer um pedido em troca. “Gostaria muito de ver vocês dois juntos de novo.” Uma semana depois, recebi chamada de vídeo do Waguinho, marido da Dani [prefeito de Belford Roxo e ministra do Turismo]. Lula estava com ele. A gente conversou como se nunca tivesse acontecido nada. O que está esquecido, está esquecido.
O sr. disse que conversaria com Lula sobre evangélicos.
Conversamos algumas vezes. Quando ele voltar da China, vamos bater um papo sobre o que o Estado precisa fazer para dissolver esse caroço golpista que Bolsonaro fez crescer enormemente.
Lula deve tentar recriar elos com pastores que o apoiaram e depois ladearam com Bolsonaro?
Dá para criar ponte com novos líderes. Com os de antigamente, não, é um pessoal que subiu na torre e jogou todas as penas no ar, não dá para juntar mais. São pessoas que deixaram seu ódio a Lula muito explícito. Como qualquer organismo, a igreja evangélica está se renovando, e tem uma quantidade grande de líderes novos, melhores.
O sr. disse após os ataques de 8/1 em Brasília: “Os evangélicos são a pior ameaça à democracia”. Acha que declarações assim correm o risco de generalizar e aumentar o preconceito?
Não é fazendo média que se vai conquistar um grupo. Uma aproximação assim reforça a expectativa agressiva de que qualquer governo tem que tratar os evangélicos na palma da mão, ou eles podem virar o futuro de uma eleição. Minha maior preocupação: não existe no Brasil nenhum grupo mais organizado e capilarizado do que os evangélicos. (Política Livre)