Aos 6 minutos do segundo tempo, o placar da partida entre Argentina e Inglaterra, pelas quartas-de-final da Copa do Mundo de 1986, marcou 1 a 0 para os hermanos. Era, até então, a Copa de Maradona: Don Diego carregava uma seleção sem estrelas jogando praticamente sozinho. O gol inaugural, porém, tinha sido polêmico. Pelo alto, Maradona venceu o goleiro inglês Shilton para dar vantagem aos argentinos. Era pouco provável que o camisa 10, com seus 1,65 metro, levasse a melhor na disputa. Só que Maradona contou com a ajuda divina. “Foi a mão de Deus”, disse, em entrevista coletiva após o jogo, justificando o fato de ter usado a própria mão para desviar a bola para a meta adversária.
Maradona ainda marcaria outro gol antológico – tido por muitos como o maior da história das Copas e, não à toa, chamado de “gol do século”. Conduzindo a bola desde o campo de defesa, driblou três ingleses e o goleiro até finalizar na meta adversária vazia. 2 a 0. Era como se, depois disso, qualquer questionamento sobre a habilidade – ou a integridade – do argentino caísse por terra. Maradona era mesmo capaz de protagonizar lances impossíveis.
O “gol do século” não impediu que a tal “mão de Deus” se tornasse um dos maiores marcos de sua carreira. Para os argentinos, afinal, a explicação dada pelo jogador sempre pôde ser lida de outra maneira – uma em que o deus do primeiro gol não era o Deus cristão, mas um baixinho habilidoso. Em seu país, Maradona conquistou ele próprio um status de divindade – mais precisamente “D10S”, forma como os fiéis da igreja maradoniana costumam chamá-lo, em referência ao número que levava às costas.
A beatificação que Maradona experimentou em vida explica a comoção causada pela confirmação de sua morte – tantas vezes espalhada no país em forma de boato. “E um dia aconteceu. Um impacto mundial. Uma notícia que marca uma dobradiça na história. A frase que foi escrita várias vezes mas que foi driblada pelo destino, agora faz parte da triste realidade: Diego Armando Maradona morreu”, disse o diário argentino Clarín, o primeiro a noticiar o falecimento do craque, em um emocionado obituário. Maradona tinha 60 anos e enfrentava sérios problemas de saúde. No início do mês, passou por uma cirurgia no cérebro por conta de um hematoma subdural – um acúmulo de sangue. Ele faleceu em sua casa em Tigre, na região metropolitana de Buenos Aires nesta quarta-feira (25), após uma parada cardiorrespiratória.
Rápido, com uma visão de jogo privilegiada e dono de uma perna canhota habilidosa, Maradona deixou uma infância pobre na periferia de Buenos Aires para se tornar profissional na equipe do Argentinos Juniors ainda aos 15 anos. Além de conquistar uma Copa e um vice-campeonato mundial com a Argentina e virar ídolo máximo do Boca Juniors, outro tradicional time argentino, ganhou fama também na Europa. Teve uma passagem importante pelo Barcelona e colocou o pequeno Napoli entre os grandes da Itália. Também foi técnico da seleção argentina, ainda que sem brilho. Mas seu simbolismo – e os motivos que o tornam uma divindade para os argentinos – extravasa o que fez dentro de campo.
A vitória contra a Inglaterra em 1986 – e a posterior conquista do bicampeonato mundial naquele ano – se tornou o momento máximo do esporte do país. Tudo porque o triunfo serviu como uma espécie de vingança para uma disputa que acontecia fora de campo: a derrota na Guerra das Malvinas, travada contra a Inglaterra anos antes, que matou centenas de argentinos e criou milhares de prisioneiros de guerra. O fato de o gol da vitória ter sido irregular não era exatamente um problema. Mais do que isso, reforçava a aura de polêmicas que o jogador acumulou ao longo da carreira.
O vício em drogas e álcool, que afastou Maradona dos gramados por duas vezes na década de 1990, minou a saúde – e a carreira – do argentino. Em 2000, já aposentado há três anos e lidando com problemas com a balança, chegou a sofrer um ataque cardíaco por conta de uma overdose. Entre 2001 e 2005, viajou a Cuba para tratar de sua dependência química. O abreviamento da carreira do argentino por questões extra-campo depõe contra o argumento de que Maradona fez o bastante para desbancar Pelé no posto de maior futebolista da história – defendido por qualquer argentino que se preze. Que tamanho Maradona teria se fosse um atleta de conduta menos conturbada? Quantos gols faria se entrasse tantas vezes em campo quanto o brasileiro?
A rivalidade entre os dois sul-americanos ganhou corpo para valer a partir do ano de 2000. Nesse ano, uma votação online da Fifa se propôs eleger o jogador do século – prêmio que Maradona levou por larga margem, com mais de 53% dos votos. Sob protestos, a entidade resolveu organizar um outro prêmio, escolhido por um comitê de especialistas. Dessa vez, Pelé foi apontado o maior. Quem protestou foi Maradona. “Eu venci, eleito pelo povo. Pelé foi o segundo. Ele, inclusive, vem após de Ayrton Senna no posto de maior atleta brasileiro. O prêmio que a Fifa deu a ele não vale merda nenhuma”, declarou, em 2013. “Eu acho que Pelé foi melhor que todos eles”, diria Pelé anos depois, em primeira pessoa, logo após elencar Cristiano Ronaldo como atual melhor do mundo e citar outros grandes da história do futebol, como Zico, Cruyff e Beckenbauer. Há quem argumente, hoje, que Maradona já tenha sido desbancado por outro craque argentino, Messi – uma afirmação que, embora polêmica, parece mais plausível que a disputa com Pelé. Apesar de ter sido eleito o melhor do mundo pela Fifa por seis vezes e se tornar o símbolo máximo do Barcelona, Messi não tem a mesma idolatria de Maradona entre os argentinos. E, provavelmente, jamais terá. Eduardo Galeano, escritor uruguaio e fã de Maradona, foi quem melhor explicou porquê. O craque da camisa 10 “foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses”, escreveu no livro Espelhos: uma História Quase Universal.
“Maradona carregava uma carga chamada Maradona, que fazia sua coluna estalar. […] Era insuportável a responsabilidade de ser um deus nos estádios, mas desde o princípio soube que era impossível deixar de fazê-lo. ‘Necessito que me necessitem’, confessou, após muitos anos carregando a auréola na cabeça, submetido à tirania do rendimento sobre-humano, intoxicado de cortisona, analgésicos e ovações, acossado pelas exigências de seus devotos e pelo ódio dos que ofendera.”
Maradona, em suma, se tornou uma divindade porque era um gênio com a bola nos pés – mas também porque era falho. E, exatamente por causa das falhas, mais humano do que qualquer outro que um dia possa ser chamado de maior da história. Que os discursos polidos de Pelé, a personalidade focada de Messi e a ética profissional robótica de Cristiano Ronaldo nos perdoem. Mas o futebol também precisa de ídolos feitos de carne e osso.
Por Guilherme Eler – Superinteressante