A cada dois anos, o Congresso debate reformas na legislação eleitoral brasileira. Entretanto, as propostas discutidas neste ano para a eleição de 2022 podem trazer um impacto de maior proporção no pleito para formação do parlamento e na escolha para representantes dos poderes executivos. A primeira proposta, e a mais polêmica, versava sobre a transformação do voto eletrônico em voto impresso. O texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19 não foi aprovado na noite da última terça-feira (10) por não atingir o número mínimo de votos dos deputados. Na noite desta quarta-feira (11), a Câmara dos Deputados rejeitou a proposta do chamado distritão e retomou as coligações.
De acordo com a advogada eleitoralista Érica Teixeira, toda essa discussão perpassa por uma necessidade de promoção de uma reforma política no país, e no atual momento, está fincado em três eixos: modificação do sistema eleitoral adotado para composição do parlamento, instituição do voto preferencial ou ranqueado para findar o segundo turno, e o voto impresso, que foi rejeitado pela Câmara dos Deputados. As propostas são relatadas pela deputada Renata Abreu, do Podemos. “São mudanças estruturais que reposicionam os partidos políticos no cenário nacional. E precisamos destacar que nossa Constituição é democrática e pluripartidária, obrigando qualquer cidadão que queira se candidatar a estar filiado a um partido”, contextualiza.
Superado o debate do voto impresso, a maior discussão no Congresso passou a ser a adoção do chamado Distritão. “Hoje, nós temos o modelo híbrido, que é o proporcional ao somado ao majoritário, em que, para votos de deputados e vereadores, se faz um cômputo de votos baseado em legenda. Esse sistema pretere o voto do candidato para um voto que privilegia a legenda partidária ou coligações, que já havia acabado nas eleições de 2020, mas agora querem retomar”, explica a advogada. A eleitoralista acrescenta que a Constituição Federal privilegia partidos e a mudança para o distritão mudaria o cômputo dos votos para uma forma mais individualizada, para eleger os que obtiverem maioria dos votos.
O procurador-regional Eleitoral da Bahia, Cláudio Gusmão, sinaliza que o distritão puro não é adotado na maioria das democracias do mundo e também acredita que a modificação pode impactar efetivamente na escolha dos representantes. “Na Bahia, nós temos 63 deputados estaduais, e assim, seria eleito o mais votado. Mas seria o mais justo?”, questiona. “Nós temos um sistema eleitoral que combina o chamado coeficiente eleitoral com o coeficiente partidário. O número de votos válidos é dividido pelo número de cadeiras. Se tiver 100 mil votos válidos, e dez vagas, o coeficiente eleitoral vai ser 10 mil votos para eleger um parlamentar. No atual sistema, um candidato com 8 mil votos, somados os votos do partido e de outros candidatos, vai ser eleito”, explana. Ele lembra que, devido a este cálculo, o deputado federal Tiririca, ao ser eleito, permitiu que cinco candidatos de candidaturas inexpressivas pudessem garantir, pois seu número de votos representava cinco vezes o coeficiente eleitoral. “Esse sistema permite que candidatos com campanha inexpressiva do mesmo partido ou coligação possam ser eleitos”, pontua Gusmão. Para o procurador-regional Eleitoral, o ideal seria um distritão misto, com destinação de metade das vagas preenchidos pelo sistema proporcional e a outra metade, com o sistema distrital.
O advogado eleitoralista Jarbas Magalhães também avaliou a proposta do distritão como danosa para o sistema eleitoral. Ele destaca que a Bahia tem 39 cadeiras na Câmara dos Deputados, e com o distritão, somente as candidaturas mais robustas, com mais recursos, poderiam se viabilizar em uma eleição majoritária. “Eu, particularmente, vejo vários problemas, pois passaria a se focar na pessoa do candidato e enfraqueceria os partidos políticos, além de tornar mais caro a eleição e mitigar o acesso das minorias ao parlamento. “Com o distritão, a maioria dos votos seria perdida. No atual sistema, ainda que o candidato não seja eleito, o voto do eleitor contribui para que aquele partido eleja algum candidato”, frisa Jarbas Magalhães.
A maior preocupação de Jarbas e Érica era com a possibilidade de sufocamento de candidaturas que representam as minorias em direito no país, que mais precisam de representatividade nos parlamentos. A eleitoralista Érica Teixeira é categórica ao dizer que esse ponto é muito importante e precisa ser salientado. “Para além do custo da modificação do nosso sistema eleitoral, que seria muito alto, impactaria diretamente na protagonização dos representantes políticos”. Para ela, os especialistas e cientistas políticos estão esquecendo que todo programa de governo é baseado em conteúdo programático, e quando se enfraquece um partido político para o voto distrital, se enfraquece o conteúdo programático de um partido. “E isso faz com que outras figuras políticas ganhem ainda mais força e se crie conflitos de forma muito mais acirrada”, sinaliza.
Érica rememora que o partido político tem um papel de representatividade e é composto por muitas vontades e ideias. “Temos que lembrar que uma democracia só existe por ser feita por um conglomerado de muitos e de heterogeneidade. Toda vez que se suprime essa sistemática de cômputo de votos, que privilegia um pouquinho de cada grupo, se tem um Estado mais democratico, um Estado mais participativo e um parlamento mais participativo. Muito provavelmente com o fim do sistema proporcional e com a criação do distritão, só se fortaleceria quem já está forte no cenário nacional e enfraqueceria as minorias, os novos representantes, as pessoas que não têm tanto acesso às verbas do fundo eleitoral, e essa concentração de poder poderia ser muito perigosa, em um cenário, que, em tese, deveria ser democrático”, avalia.
Neste modelo, as candidaturas femininas estariam mais fragilizadas ainda. “Já temos poucas mulheres no parlamento. Não temos mais do que 15% deste espaço de representação. Com o distritão, se poderia ter menos mulheres nesse espaço público, pois o custeio da campanha feminina é feito majoritariamente com verba pública”, afirma Érica Teixeira. Segundo a especialista, os partidos políticos teriam a missão de proteger essas candidaturas, mas em caso de enfraquecimento das siglas, seria “dar poder a quem já tem poder nesses espaços públicos de representação”.
A VOLTA DOS QUE NÃO FORAM
As eleições municipais de 2020 foram realizadas sem as coligações partidárias. E agora, a Câmara aprovou a possibilidade de partidos se unirem novamente em campanhas. Érica Teixeira afirma que as coligações surgiram para firmar alianças e ganhar forças e formar um bloco político para ganhar uma eleição. “O retorno das coligações não é o problema. O problema é como essas alianças são feitas, se são coerentes. A aliança política é importante, porque dá uma força para representatividade, mas pode ser perigosa se for feita de forma incoerente. É preciso pensar no que pode ser feito para corrigir esse descompasso”, provoca a advogada eleitoralista. O vai e volta nas leis eleitorais, segundo Jarbas Magalhães, representam uma “insegurança jurídica” também. “O fim da coligação foi uma coisa boa, pois veio para fortalecer os partidos, diminuir o número de legendas, que torna a governabilidade inviável. Além disso, as coligações promoviam um voto distorcido. A pessoa gostaria de votar em um candidato pela proposta, mas esse candidato está ligado a uma sigla da coligação, da qual ele não coaduna com as propostas. Com isso, o eleitor mudava o voto”, pontua.
Outra polêmica é a proposta do voto preferencial ou ranqueado. O procurador-regional Eleitoral afirma que a criação de uma lista de preferência para findar o segundo turno para os cargos do executivo ainda é incerta. “Ningué sabe ao certo como esse sistema poderia funcionar. Ele é adotado em alguns países da Europa e em Nova York, mas não se sabe como funcionaria por aqui”, sinaliza. Jarbas Magalhães sintetiza que o voto favorável seria uma lista de ordem de preferência dos eleitores. “Desta forma, se elegeria o candidato menos rejeitado, mas seria uma confusão que só atrapalharia o processo eleitoral”, analisa. A medida, se vingar, só será colocada em execução em 2024. O argumento que esse procedimento diminuiria os custos das eleições e de campanhas, para Érica Texeira, não apresenta fundamento. Ela também diz que não há garantias que de os eleitores analisarão mais de uma candidatura para poder votar em mais candidatos. “O eleitor brasileiro já não gosta de escolher um candidato. Será que ele vai escolher dois, três ou quatro? Para além disso, há efeitos práticos no dia das eleições, no período eleitoral e na repercussão orçamentária e política dos anos posteriores que precisam ser avaliados”, pondera.
O FANTASMA DO VOTO IMPRESSO
Ainda que a proposta de voto impresso tenha sido arquivada, o fantasma dele pode permanecer por muitos anos nos corredores do Congresso. O advogado Jarbas Magalhães acredita que no futuro o tema voltará a ser debatido. “Esse questionamento existe desde a criação das urnas eletrônicas. Em outros momentos, o voto impresso ocorreu através de lei ordinária, como no estado de Sergipe e em São Paulo, mas de modo que o eleitor não tinha acesso ao comprovante. O voto impresso ia para uma urna de lona. Só que a impressora travava toda hora e se quebrava o sigilo do voto. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade dessas leis e teve muita resistência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Agora, tentaram emplacar o texto como uma PEC para driblar o entendimento do STF de que o voto impresso era inconstitucional”, narra Jarbas Magalhães. O tema, segundo ele, voltará a ser discutido pela ideologização das urnas.
Para Cláudio Gusmão, “todo sistema eleitoral é passível de aperfeiçoamento, de melhora, de ampliação dos requisitos de segurança, e de legitimação”. Porém, para ele, os motivos atuais invocados para instauração do voto impresso “não subsistem”. “Podemos discutir a implantação do voto impresso, mas não sob essa perspectiva de uma conspiração, de uma manobra para beneficiar candidato A,. B ou C”, salienta o procurador-regional Eleitoral da Bahia. “O sistema eleitoral brasileiro demanda alterações para torná-lo mais racional, e dentro desse conjunto, a urna eletrônica e o sistema de apuração é o que há de melhor. Não é algo que justifique essa iniciativa com esse fundamentos, até porque, a gente nunca sabe se o que foi sugerido vai ser efetivamente aprovado, pois pode ter emendas, destaques, por exemplo”, declara. Gusmão lembra que a biometria não era algo indispensável, mas foi instituída para garantir mais segurança para “evitar que uma pessoa vote no lugar da outra, ou de pessoas já falecidas e exerça o sufrágio em nome dela”.
RAIZ DE TODO MAL?
Os especialistas são unânimes em declarar a segurança das urnas eletrônicas e também da necessidade de se realizar uma reforma política. Porém, reconhecem que tal proposta não há de sair do parlamento atual brasileiro. “Toda eleição, temos uma mudança nas leis eleitorais. Uma reforma anterior não consegue se manter por duas eleições e questões importantes não são levadas à sério como as cotas. A preocupação dos legisladores é garantir suas reeleições, são propostas para manter os que já estão lá, pois eles não irão fazer uma reforma autofágica”, avalia Jarbas Magalhães.O eleitoralista afirma que o país precisa de uma reforma política que trate de questões sensíveis. “Mas é difícil enfrentar esse tema sob os olhos de quem vai ser diretamente afetado pela situação. Eles foram eleitos com esse sistema e farão de tudo para manter a permanência”, assevera. Magalhães avalia que é melhor manter o sistema atual, com todos os problemas que tem, do que se levar para frente as propostas que estão sendo debatidas. Cláudio Gusmão vai além e defende o fim das reeleições, por ser um “celeiro de problemas” e que é preciso “enxugar a legislação”, como a Lei da Ficha Limpa, que abre várias teses de aplicação do que seria uma condenação por improbidade administrativa.
por Cláudia Cardozo – Bahia Notícias