Além de ser a primeira jornalista negra a ter destaque na televisão brasileira, Glória Maria foi pioneira também ao se tornar a primeira pessoa no país a usar a Lei Afonso Arinos para denunciar e se proteger contra o racismo. O fato ocorreu nos anos 1970, quando ela foi impedida por um gerente de entrar pela porta da frente de um hotel no Rio de Janeiro para fazer uma entrevista.
“Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode. Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, relatou ao longo de um programa da Globo sobre racimos, exibido em 2020.
Num entrevista para uma transmissão ao vivo no Youtube, a apresentadora avançou sobre o tema e deu o que falar após uma declaração polêmica “Hoje tudo é racismo, tudo é preconceito”, avaliou. Ela usou a experiência pessoal que tem com os colegas de equipe na televisão para exemplificar atos que considera inofensivos. “Eu até hoje na TV tenho meus câmeras antigos, os técnicos que estão comigo há quarenta anos, todos me chamam de neguinha. Eu nunca me ofendi, eu nunca me senti discriminada. Eles me chamam de uma maneira amorosa, carinhosa. É claro que se eles falam ‘ô nega, não sei o quê’ é outra coisa. Então, hoje. Tudo é preconceito”, pontuou.
Na entrevista que levantou a polêmica, Glória Maria falava sobre o contexto da televisão e como ela, pessoalmente, achava os novos padrões morais “basicamente um saco”, criticando também as pessoas que denunciam assédios nos ambientes de trabalho.
“Tudo é assédio e está chato. Eu estou há mais de quarenta anos na televisão, já fui paquerada muitas vezes, mas nunca me senti assediada moralmente. Eu acho que o assédio moral é uma coisa clara, não tem dubiedade. Não tem como você interpretar. O assédio é uma coisa que te fere, é grosseiro, te machuca, te incomoda, te desmoraliza. Agora, a paquera… Pelo amor de Deus”, colocou.
A jornalista usou mais uma vez a experiência pessoal para validar o ponto. “Os homens estão com medo de paquerar. Caramba, eu quero ser paquerada ainda, gente. Estou viva. Mas, existe uma cultura hoje que nada pode”, considerou.
Para Glória Maria, é preciso que as pessoas saibam discernir as coisas. “Nós, mulheres, sabemos fazer bem a diferença de uma paquera para um assédio, para um abuso sexual. Se a gente não tiver a capacidade de ver isso, de observar isso, caramba, por que a gente chegou até aqui? Então, eu acho que tem que ter uma diferenciação mesmo. Não dá para você generalizar tudo”, ponderou.
Ainda com um tom bastante pessoal, a jornalista terminou dizendo que não vai aderir a esses padrões de conduta. “Eu acho que esse mundo está muito chato. Eu acho que essa coisa do politicamente correto é um porre, eu não sou politicamente correta e não vou ser. Não adianta. Não venho de um mundo politicamente correto”, tachou.
Pioneira ao abrir os caminhos para mulheres e negros
Até a década de 1970, os negros eram raríssimos na televisão brasileira. Nas novelas, atores eram relegados a papéis secundários. No jornalismo, então, o cenário era quase nulo. Ainda falta muito para que negros e pardos ocupem seus lugares na tevê brasielira, ainda que tenhamos Maju Coutinho, Heraldo Pereira, Aline Midlej, Zileide Silva, Joyce Ribeiro, Flávia Oliveira, Márcio Bonfim, Abel Neto, Adriana Couto. Todos, porém, devem muito a Glória Maria, a primeira jornalista negra a ter destaque na telinha..
Nascida em Vila Isabel, no Rio, filha de um alfaiate e de um a dona de casa, ela já era formada em jornalismo pela PUC quando apareceu na tela da Globo pela primeira vez em novembro de 1971, cobrindo o trágico desabamento do elevado Paulo de Frontin. Não demorou para cair nas graças do público. Fez entrevistas históricas nos anos seguintes, de Freddie Mercury, durante o primeiro Rock in Rio, em 1985, ao general João Baptista Figueiredo, o último ditador do regime militar. “Ele não me suportava”, contou ela a Pedro Bial numa entrevista de 2020. “Passei todo o governo Figueiredo ouvindo ‘tira aquela neguinha da Globo daqui’.”
Foram vários os episódios de racismo que a jornalista enfrentou ao longo da carreira. Num Roda Viva exibido em 2022, ela conta que até mesmo suas filhas, adotadas em Salvador em 2009, sofriam ataques racistas no colégio. “Nada blinda uma mulher preta do racismo, nem mesmo a fama”, afirmou.
Mesmo com tantos obstáculos, Glória Maria chegou a ancorar programas importantes como o RJTV (noticiário local do Rio de Janeiro), o Jornal Hoje e o Fantástico, onde permaneceu de 1998 a 2007. Tirou então um período sabático e se afastou do vídeo por dois anos. Retornou apresentando o Globo Repórter, primeiro ao lado de Sérgio Chapelin e, depois, de Sandra Anneberg. Comandou diversos episódios do programa, até ser diagnosticada com um câncer no cérebro em 2019.
Glória percorreu o mundo fazendo reportagens. Esteve na Palestina, na Nigéria e no sultanato de Brunei. Gabava-se de ter conhecido mais de 200 países –seus colegas brincavam que ela deveria ter ido a algum outro planeta, já que não chegam a 200 as nações e territórios da Terra.
Sua vida amorosa sempre foi agitada, com muitos namorados –muitos deles, estrangeiros. No final da década de 970, teve um relacionamento com João Roberto Marinho, filho do fundador da Globo, Roberto Marinho. Mas a grande paixão de sua vida eram mesmo as filhas adotivas, as irmãs biológicas Maria, atualmente com 15 anos, e Laura, com 14.
Glória Maria removeu um tumor maligno no cérebro em 2019 e, desde então, diminuiu o ritmo de trabalho. Teve covid-19 em 2022, e sua última aparição no Globo Repórter foi em agosto passado. Uma metástase no pulmão fez com que fosse internada no dia 5 de janeiro.
Morreu aos 73 anos de idade, e deixa uma enorme lacuna. Afinal, foram mais de 50 anos no ar, na emissora de maior audiência do país. Suas entrevistas em tom descontraído geravam imediata empatia com o público. Seu pioneirismo também abriu portas para várias gerações de jornalistas negros. E sua carreira admirável é um exemplo de dedicação e coragem para todos os profissionais da área. (Correio)