Após o Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP) ingressar na Justiça com quatro ações contra plataformas de transporte por aplicativo, como Uber e 99, empresar do setor podem estar com os dias contados no Brasil. Isso porque caso ações, que foram ajuizadas na última semana, sejam acatadas pelo Poder Judiciário, elas podem inviabilizar o serviço das companhias em todo o país, visto que, apesar de serem movidas em São Paulo, onde a maioria dessas plataformas têm sede, as ações têm abrangência nacional.
Nas peças, os procuradores pedem o reconhecimento do vínculo de emprego, que as empresas se abstenham de fazer contratações fora das regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e uma indenização por dano moral coletivo equivalente a 1% do faturamento bruto dessas empresas.
O MPT pede também que os aplicativos garantam o registro na carteira de trabalho aos profissionais sob pena de multa de R$ 10 mil por trabalhador encontrado em situação irregular, em cada constatação.
O advogado especialista em direito do trabalho e professor universitário Ariston Flávio afirma concordar com as ações movidas pelo MPT, mas reconhece as dificuldades encontradas na hora dos julgamentos desses processos.
“O grande problema é que nossos magistrados da Justiça do Trabalho não conseguem entender o funcionamento desses aplicativos. Se eles compreendessem como essas plataformas funcionam, sem dúvidas, eles garantiriam o reconhecimento desse vínculo empregatício”, pontua.
Segundo os procuradores, eles tiveram de entrar com outras ações para obter os dados de uso, e apenas a 99 foi obrigada a fornecê-los. Os números mostraram que, num universo de 10 mil motoristas que trabalhavam pela plataforma entre 2018 e 2019, 99% trabalharam ao menos 4 dias por semana.
Dados públicos apontam que apenas a Uber possui mais de um milhão de motoristas em seu sistema no país. Assim, se o MPT sair vitorioso na ação e big tech não ‘assinar a carteira’ de seus parceiros, a multa pode ultrapassar a casa dos R$ 10 bilhões.
Na avaliação do economista e professor do UniFBV Paulo Alencar, se as ações forem adiante, elas poderão determinar o fim das plataformas de transporte por aplicativos no Brasil. “As plataformas operam como aplicativo de ligação entre o usuário e o motorista e não determina a obrigatoriedade na prestação de serviço, mas apenas conecta o prestador, que é autônomo, e o cliente final”, explica Alencar.
“Se houver obrigatoriedade prevista na CLT para a Uber e outros apps no Brasil; de fato, eles serão plenamente inviabilizados e tendem a ser descontinuados”, completa, apontando que a medida tende a elevar os preços das corridas para os usuários.
O que diz a Lei?
Os artigos 2º e 3º da CLT trazem os itens que caracterizam essa relação. Ao todo, são cinco condicionantes: serviço prestado por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. A gente explica cada um deles abaixo.
De acordo com a CLT, “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Esses trechos da legislação baseiam as ações apresentadas pelo MPT e já serviram de fundamento para decisões recentes que foram desfavoráveis às plataformas.
Em um dos processos cujos resultados não foram bons para os apps de transporte, o desembargador Marcelo Ferlin D’Ambroso, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), condenou a empresa em R$ 1 milhão pela prática de dumping social, no final de setembro de 2021. O dinheiro deverá ser revertido a entidade pública e/ou filantrópica a critério do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Para o procurador-geral do Trabalho, José Lima, o mundo do trabalho é dinâmico, como toda a sociedade, e precisa se adaptar. “Essa adaptação, no entanto, não pode significar precarização do direito do trabalhador. É preciso que o Estado elabore regras específicas para esse tipo de trabalho e que os direitos garantidos na Constituição de 1988 cheguem aos trabalhadores”, argumentou Lima.
O desembargador D’Ambroso, porém, discorda da opinião do colega jurista. “Nós temos regulamentação, ela se chama Consolidação das Leis do Trabalho. Toda relação de trabalho deve se pautar pela CLT”, disse ele em entrevista recente ao JC.
O titular da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret), o procurador Tadeu Henrique Lopes da Cunha, diz que o comportamento das plataformas digitais frente ao Poder Judiciário revelou a existência de um contexto de atuação de defesa com base na jurimetria, com a intenção de dificultar o revolvimento da matéria pelo Poder Judiciário, construindo posicionamentos a seu favor, por meio de acordos que manipulam a jurisprudência.
“As empresas enaltecem a existência de decisões judiciais de não reconhecimento do vínculo de emprego, mencionando, inclusive, que muitas decisões judiciais lhes seriam favoráveis. Ocorre que o posicionamento jurisprudencial citado pelas empresas não é casual ou resultado da ausência de compreensão da Justiça sobre a metodologia de trabalho em questão”, explica Cunha.
Ainda segundo ele, as decisões favoráveis às empresas são maiores em número do que as contrárias a elas por causa da formalização de acordos judiciais que impedem o revolvimento da matéria pelas instâncias judiciais trabalhistas, o que coloca obstáculos à formação de jurisprudência contrária a seus propósitos.
O MPT salientou que, durante a pandemia, houve o ajuizamento de 12 novas ações civis públicas nas esferas trabalhistas da Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Fortaleza, permitindo a abertura de investigações contra as empresas por supostas irregularidades na vigência da crise sanitária.
O que dizem as empresas
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa as plataformas no país, informou, por nota, que os apps fazem uma intermediação entre consumidores, estabelecimentos comerciais e profissionais parceiros, motoristas e entregadores que atuam de forma independente e sem a subordinação trabalhista às plataformas.
“Na contramão da ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho, a grande maioria desses profissionais têm repetido que não deseja ter vínculo com uma plataforma”, disse a entidade, ao citar os resultados de uma pesquisa sobre o tema.
Além disso, a entidade salientou que as decisões proferidas tanto pelo Tribunal Superior do Trabalho, como pelo Superior Tribunal de Justiça já afirmaram, em diferentes processos, que “os parceiros de aplicativos são autônomos, sem vínculo de emprego com as plataformas”.
A Uber, por sua vez, afirmou que não teve acesso à ação e, assim que for notificada, apresentará todos os elementos necessários “para demonstrar que as alegações e pedidos do MPT-SP são baseados em entendimento equivocado sobre o modelo de funcionamento da empresa e da atividade dos motoristas parceiros”.
A exemplo da Amobitec, a big tech multinacional afirmou que diversas instâncias da Justiça do Trabalho vêm construindo “sólida jurisprudência” sobre o fato de não haver relação de emprego entre o aplicativo e os motoristas parceiros.
“Em todo o país, já são mais de 1.450 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho neste sentido, sendo que não há nenhuma decisão consolidada que determine o registro de motorista parceiro como empregado da Uber”.
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