Neste domingo (31), último dia do ano, o g1 conta uma história de esperança. Pela primeira vez, a professora de dança e bailarina Yohana Cerqueira de Santana, de 47 anos, vai começar um novo ano sendo quem realmente é. Isso porque, após 13 anos de espera, ela realizou o sonho de fazer a cirurgia de redesignação sexual em 2023.
A baiana foi a primeira mulher trans a realizar esse procedimento no estado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), em Salvador.
“Hoje eu posso viver e me sentir como eu sempre me senti, porque faltava uma correção e, graças a Deus, isso foi feito. Estou muito feliz”, afirmou.
Ainda na barriga da mãe, o bebê tem o gênero imposto com base no sexo biológico descoberto na ultrassom. Como Yohana nasceu em um corpo considerado masculino, era desse modo que ela era tratada socialmente. “Fui criada como um menino, então, não tive espaço para ser quem eu sempre me senti”.
Na adolescência, época em que o corpo começa a se desenvolver durante a puberdade, ela buscava respostas em relação à própria existência, já que não se identificava com o sexo biológico e, também, não era uma mulher cisgênero – pessoa que nasceu em um corpo considerado biologicamente feminino e se identifica como mulher.
Yohana atribuiu essa dificuldade de se entender enquanto uma mulher trans – pessoa que nasceu em um corpo considerado biologicamente masculino, mas que se identifica com o gênero feminino – aos estudos de gênero e sexualidade que, segundo ela, “não eram tão desenvolvidos na época”.
“Se falava muito sobre travestis, lésbicas, gays, mas eu não era nenhum desses”, relembrou.
? Criação rígida e religiosa
Filha de mãe católica e pai evangélico, Yohana teve uma criação rígida com base no gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Apesar disso, ela nunca se identificou com o pronome masculino. “Desde criança, eu sempre me senti uma menina. Eu não compreendia por que eu era diferente das outras meninas, pelo fato da genitália”.
Por muito tempo, Yohana escondeu sua feminilidade. Ela tinha medo de ser vítima de transfobia e sofrer algum tipo de violência física ou verbal na rua.
“Eu tinha muito medo, então por isso a demora de me colocar feminina. Fui me colocar totalmente feminina já adulta, aos 29 anos, sendo mãe. A gente fica sem saber, de fato, qual comportamento ter perante a sociedade com essa ação discriminatória que a gente sofre dia a dia”, disse.
??? Com quase 30 anos, Yohana já era mãe de Caroline Santana, 29, que na época era uma criança de 10 anos. Em entrevista ao g1, a jovem relembrou o momento em que a mãe falou para ela que era uma mulher trans.
“A gente fez uma reunião e minha mãe disse que não estava bem, que estava infeliz, e precisava de algumas mudanças para que viesse a se tornar a pessoa que realmente era. Não vou dizer que foi fácil, mas acho que, devido à criação que tive, minha mente sempre foi bem aberta. Eu disse que ia estar sempre do lado dela para o que ela precisasse, porque ela é a minha mãe”.
Caroline, inclusive, comentou que já arrumou “muita confusão na rua” ao defender a mãe de pessoas preconceituosas. Segundo a jovem, Yohana sempre tenta manter a paciência nessas situações, ao contrário da filha.
“Ela [Yohana] pedia para eu fingir que não estava ouvindo, dizia para passar direto. Alguns casos, eu atendia o pedido dela e ignorava, mas tinha outros que eu não deixava passar. As pessoas devem ter respeito umas pelas outras e eu estou com minha mãe para o que der e vier”.
Em 2010, Yohana descobriu, através de uma reportagem, a possibilidade de fazer a cirurgia de redesignação sexual. No entanto, na época, não existia ambulatório trans na capital baiana.
“Eu busquei [atendimento] no Smurb [Centro de Promoção à Saúde Universitária Rubens Brasil], no serviço médico da universidade, para poder ser acompanhada [por profissionais multidisciplinares], mesmo não sendo um ambulatório trans”.
A partir daí, a professora de dança passou a ser acompanhada por uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde, composta por endocrinologista, psicócologo, psiquiatra e também pelo cirugião.
O acompanhamento envolve também o processo de hormonização, que é chamando de terapia hormonal. Segundo a endocrinologista Luciana Oliveira, o objetivo é manter o ambiente hormonal do indivíduo em acordo com sua identidade de gênero:
? Para mulheres trans e travestis, são receitados hormônios feminilizantes e bloqueadores androgênicos para feminilização, bem como evitar alguns efeitos da testosterona endógena;
? Para homens trans, é recomendado testosterona para virilização.
A endocrinologista enfatizou que é de extrema importância que a terapia hormonal seja feita com acompanhamento médico. Fazer a hormonização por conta própria é perigoso e pode causar efeitos colatareis moderados a graves.
“Podem ocorrer desde alterações de glicemia, perfil lipídico, enzimas hepáticas até trombose venosa, além de outros fenômenos vasculares como Acidente Vascular Cerebral [AVC] e infarto do miocárdio”, alertou.
A médica também destacou que a realização de exames complementares regularmente e acompanhamento médico permite detecção precoce de alguns efeitos colaterais.
Após dois anos de acompanhamento, Yohana recebeu o laudo médico e, com isso, conseguiu retificar o nome e sexo no registro civil. No entanto, a realização da cirurgia aconteceu apenas em agosto de 2023. Ela recebeu a notícia quando estava no ônibus.
“A doutora me ligou dizendo: ‘Yohana, seu sonho vai se realizar. Eu acho que vai se realizar agora’. Eu fui tomada por uma felicidade que não sei nem descrever. [Foi uma sensação] muito satisfatória, uma plenitude”, contou emocionada.
? Quem pode fazer a cirurgia pelo SUS na BA?
Na Bahia, a primeira unidade autorizada pelo Ministério da Saúde a realizar o “processo transexualizador” pelo SUS foi o ambulatório transexualizador do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), localizado na capital baiana.
O processo transexualizador pode ser definido como um conjunto de estratégias assistenciais para transexuais que pretendem realizar modificações corporais do sexo, que inclui a cirurgia de mudança de sexo, em função de um sentimento de desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero.
Para fazer a cirurgia de redesignação sexual pelo SUS, é preciso:
- Ter idade a partir de 21 anos;
- Ter residência fixa em qualquer município do estado da Bahia;
- Estar cadastrado e ser acompanhado em unidades de saúde ambulatorial habilitadas pelo SUS;
- Também será considerada a data de entrada ou matrícula do usuário na unidade para identificar o período real de acompanhamento multiprofissional já realizado;
- Os pacientes que estão realizando consultas diversas no SUS ou em consultórios particulares devem seguir o Projeto Terapêutico SIingular adotado nos Ambulatórios Especializados no Processo Transexualizador e, encaminhar seus relatórios para validação nos Ambulatórios Trans;
- Manter acompanhamento regular com as diversas especialidades que compõem a equipe multiprofissional da Unidade de Saúde ou Ambulatório Especializado no Processo Transexualizador;
- Manter regularidade das consultas endocrinológicas e estar em uso de hormonioterapia cruzada orientada por médico por, no mínimo, um ano;
- Possuir um período de acompanhamento psicológico de, no mínimo, dois anos, para realização dos procedimentos cirúrgicos pelo SUS, não sendo obrigatório o acompanhamento ter que ser realizado com o mesmo profissional ininterruptamente. Podem ser considerados períodos anteriores de acompanhamento psicológico (psicoterapia), desde que realizados por profissionais devidamente cadastrados no Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-03), e desde que sejam apresentados relatórios, parecer ou laudo psicológicos do serviço prestado.
? A lista de espera é construída em reunião conjunta das equipes do HUPES e CEDAP e um documento de encaminhamento será gerado e enviado às equipes cirúrgicas. As pessoas são convocadas seguindo a ordem pré-determinada.
Além disso, há uma lista individualizada para cada tipo de cirurgia, sendo priorizados os indivíduos com maior idade por faixa etária: 61 anos ou mais; 51 a 60 anos; 41 a 50 anos; 31 a 40 anos; 21 a 30 anos.
G1/Bahia