A menina de 13 anos que foi abusada pelo pai, engravidou e morreu após o parto

Menina que era violentada engravidou aos 12 anos, se tornou mãe, mas morreu por complicações de saúde causadas por uma gestação de alto risco. — Foto: Getty Images

Jéssica* teve a infância e o futuro roubados pelos abusos sexuais praticados pelo próprio pai. Ela engravidou aos 12 anos. Meses depois, se tornou mãe e morreu por complicações de saúde causadas por uma gestação de alto risco.

Ela morava em uma comunidade ribeirinha no município de Coari, no interior do Amazonas, junto com os pais e cinco irmãos. Em depoimento, após descobrir a gravidez, ela disse a assistentes sociais que foi abusada pelo pai durante anos, quando ficava sozinha com ele.

“Sempre que a minha mãe viajava para a cidade, ele aproveitava a ausência dela e dos meus irmãos para fazer isso comigo”, disse a adolescente ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Coari. A garota revelou que costumava chorar muito durante os abusos e pedia “pelo amor de Deus” para o pai parar.

O caso foi levado às autoridades policiais. O pai, que hoje está preso, fugiu logo após a descoberta da gestação. Ele nega os abusos sexuais. Um exame de DNA, porém, comprovou que ele é o pai do bebê da própria filha.

Histórias como a de Jéssica ilustram a tragédia do abuso sexual no Brasil. O assunto ganhou destaque nos últimos dias, após o caso de uma garota de 10 anos, que mora no Espírito Santo, engravidar ao ser estuprada — ela relatou que o tio, de 33 anos, abusava sexualmente dela havia quatro anos.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 aponta que quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país a cada hora.

Um levantamento feito pela BBC News Brasil, com base no Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, revela que o país registra uma média anual de 26 mil partos de mães com idades entre 10 a 14 anos.

Ainda segundo o levantamento, o país registra, ao menos, seis abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos, em média.

A criança do Espírito Santo, que não queria ter o bebê e foi apoiada pelos parentes, passou por um procedimento de aborto legal em um hospital de Recife (PE). O Código Penal brasileiro permite a interrupção da gravidez, com o consentimento da gestante, em casos de estupro e quando há risco à vida da mulher.

O caso da criança de 10 anos causou protestos. Grupos que se definem como pró-vida se manifestaram em frente à unidade de saúde em Recife para tentar impedir que a gravidez fosse interrompida. Mesmo se tratando de uma gestação extremamente arriscada, em razão da idade da menina, os grupos diziam que o aborto não deveria acontecer.

Jéssica seguiu com a gravidez — as gestações entre meninas de 10 a 15 anos são consideradas de alto risco —, mas não resistiu.

Os abusos sexuais

Em depoimento à polícia, um agente de saúde da região em que Jéssica morava disse que logo no início da gestação, quando a jovem ainda não sabia que estava grávida, o rendimento escolar dela caiu, ela reclamava de constantes dores de cabeça, sentia tontura e estava muito abatida.

A barriga dela começou a crescer. A família notou as mudanças no corpo da jovem e descobriu a gestação no fim de agosto de 2019. O agente de saúde contou que os parentes de Jéssica ficaram revoltados ao descobrir que a garota tinha sido abusada pelo pai.

Documentos aos quais a BBC News Brasil teve acesso relatam que Maria*, a mãe de Jéssica, levou a filha ao Creas da cidade no começo de setembro. Na época, a garota estava por volta do quinto mês de gestação.

No depoimento ao Creas, onde recebeu acompanhamento psicológico, Jéssica, que estava extremamente triste e envergonhada, definiu o pai como “monstro” e “cínico”. A jovem relatou que ele dizia que se ela contasse sobre os abusos sexuais, a mãe dela não acreditaria e ainda agrediria a filha.

À polícia, a jovem disse que a primeira tentativa de abuso foi aos nove anos, quando o pai tocou partes íntimas dela enquanto eles estavam em uma área afastada para recolher castanhas.

“O pai a levava para pescar, aproveitava que estavam em um local ermo e a estuprava. Isso aconteceu até que a garota engravidou. Ela tinha medo de contar para outra pessoa e não acreditarem nela”, revela o delegado de Coari, José Afonso Ribeiro Barradas Junior, responsável por apurar o caso.

A mãe da garota disse que desconhecia os abusos sexuais praticados pelo marido, o agricultor Lauro*, de 36 anos. Jéssica foi a primeira filha do casal. Maria, de 29 anos, tinha 15 quando engravidou.

Ao Creas, em setembro passado, a mulher contou que percebeu a menstruação atrasada de Jéssica, mas pensou que pudesse ser anemia. Maria disse que desconfiou que havia algo errado com a filha ao notar que a garota estava triste e rebelde. Ela afirmou que desconfiou da gravidez somente em agosto, após mudanças nos seios e na barriga da menina.

Segundo Maria, Jéssica revelou ao avô que era abusada pelo pai havia quase cinco anos e não contava por medo de apanhar. “Chamei a minha filha para conversar. Ela me contou, chorando, sobre o abuso e também o mal-estar que estava sentindo”, disse a mulher às assistentes sociais. Ela afirmou que estava indignada com a situação e queria que o marido pagasse pelo que fez.

Segundo os documentos do caso, Maria não quis denunciar o marido, a princípio, por acreditar que Lauro poderia não ser o pai do filho de Jéssica. Mas diante da pressão da família, ela procurou a polícia. Logo que o caso ganhou repercussão na cidade, Lauro deixou a região ribeirinha.

Em depoimento à polícia, no começo de novembro, Jéssica mudou a versão do que havia dito anteriormente. Ela relatou que o pai tentou acariciar suas partes íntimas aos nove anos, mas parou quando ela disse que contaria à mãe. A jovem também falou que quando tinha 12 anos, o homem tentou abusar sexualmente dela, mas não conseguiu, pois ela correu. A garota disse que o pai do bebê que carregava era um idoso que, segundo ela, havia morado por alguns meses com a sua família.

A jovem ainda disse, no depoimento, que nunca havia sido abusada por Lauro e que havia contado para a família que estava grávida do próprio pai porque se sentiu pressionada.

A Polícia Civil e o Ministério Público do Amazonas, porém, acreditam que a garota tenha sido induzida a mudar a versão dos primeiros relatos. “Comumente, familiares pressionam essas crianças para contarem outras histórias e tentar incriminar terceiros. Isso pode acontecer até mesmo a pedido dos pais. Muitas vezes, a mãe depende economicamente do pai e não quer vê-lo preso”, diz o promotor Wesley Machado, que atuava em Coari e foi o responsável por investigar o caso.

A gravidez

Após meses sem qualquer acompanhamento especializado, Jéssica passou a receber ajuda médica e psicológica depois de sua mãe procurar o Creas. Os documentos apontam que ela não queria abortar, ainda que fosse um direito. Ela dizia que amava o bebê, apesar de tudo.

“Não houve nenhum pedido de aborto. O assunto não foi tocado pela família ou pela garota, ainda que a Lei permitisse isso. No curso do inquérito, há menção a uma orientação religiosa cristã, que pode ter influenciado essa decisão em não abortar”, diz o promotor Wesley Machado.

As gestações de jovens de 10 a 15 anos são consideradas de alto risco, porque são garotas que estão em fase de desenvolvimento. Especialistas apontam que há, aproximadamente, quatro vezes mais chances de mortes entre grávidas adolescentes, com 15 anos ou menos, do que entre as mais velhas.

Um estudo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynaecology, feito com jovens gestantes na América Latina, apontou que as grávidas com 15 anos ou menos têm mais propensão a desenvolver anemia grave, riscos elevados de hemorragia pós-parto e os bebês podem nascer pequenos, em comparação ao período gestacional — e há mais chances de morte neonatal precoce.

A gravidez entre jovens de 10 a 15 anos tem riscos elevados de pré-eclampsia — aumento da pressão arterial, em geral acompanhada de excesso de proteína na urina — e de eclampsia — convulsões recorrentes.

A situação emocional da jovem também pode colaborar para piora do estado de saúde durante a gestação. “Toda menina grávida de até 14 anos foi estuprada, não importa a circunstância. O estupro de vulnerável é justamente em função da idade”, apontou a advogada Luciana Temer, em recente entrevista à BBC News Brasil. Ela é presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.

O nascimento do bebê e a morte da jovem mãe

No começo de dezembro passado, o bebê de Jéssica nasceu prematuro, aos oito meses, por meio de uma cesárea. O procedimento foi feito às pressas, em razão do estado de saúde da garota, que desenvolveu uma grave anemia. Ao longo da gestação, a jovem teve diversas dificuldades de saúde. Dias após o parto, a situação ficou ainda mais grave. Em 11 de dezembro, a adolescente não resistiu. No registro de óbito consta que ela morreu em decorrência de pré-eclampsia grave e infecção generalizada.

Lauro foi preso nove dias após a morte da filha. Em depoimento, o homem negou ter abusado da garota. Ele disse que não sabia o motivo de Jéssica acusá-lo de estupro e argumentou que fugiu da comunidade ribeirinha em que morava, logo após a descoberta da gestação, por medo de agressões.

O agricultor foi denunciado pelo Ministério Público do Amazonas por estupro de vulnerável, com o agravante da morte da jovem. “Ele pode pegar até 20 anos de prisão”, diz o promotor Wesley Machado. O órgão também pediu que Lauro pague indenização de R$ 50 mil por danos morais à família de Jéssica.

Uma das principais provas contra Lauro é o exame de DNA feito no início deste ano, a pedido da Polícia Civil, que comprovou que ele é o pai do filho de Jéssica.

A defesa do agricultor nega as acusações. O advogado Vanderson Oliveira diz que pedirá um novo exame de DNA, pois Lauro afirma que nunca abusou da filha. “Conversei com o acusado informalmente e ele disse que a denúncia é infundada”, argumenta Oliveira.

O promotor do caso afirma que não há dúvidas de que o pai abusou sexualmente da filha. “O exame de DNA e os relatos da jovem confirmam que ele foi o responsável pelo ato sexual”, declara Machado.

Lauro permanece em prisão preventiva. A defesa tenta a sua liberdade provisória, sob o argumento de que ele, que teve covid-19 na prisão e se recuperou, corre risco de saúde. O Ministério Público, porém, pede que ele permaneça preso e justifica que o homem apresenta bom estado de saúde, após se recuperar do coronavírus. A Justiça analisa o pedido.

O caso tramita em segredo de Justiça. As primeiras audiências ainda não foram realizadas, em decorrência da pandemia de covid-19.

O filho de Jéssica, segundo o delegado José Afonso Ribeiro, passa bem e está sob os cuidados dos parentes da jovem. A reportagem não conseguiu contato com a família da garota.

Para o delegado, o caso de Jéssica representa a história de muitas outras crianças que sofrem abuso sexual. Segundo ele, uma das principais características dessas vítimas é a angústia que carregam. “Essa garota ficou muito abalada e precisou de acompanhamento psicológico. Essas crianças, normalmente sofrem muita pressão para comprovar que realmente foram estupradas”, diz.

O promotor do caso lamenta as circunstâncias que fizeram com que os abusos fossem descobertos. “Ela, assim como tantos outros casos, precisou correr o risco com uma gravidez para que tudo isso viesse à tona. É revoltante”, afirma Machado. (G1)

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