Absolvido, advogado que foi traficante conta como refez a vida em Salvador

A incrível história de Anderson Luiz, apontando como líder do tráfico de drogas no Rio. / Foto: Betto Jr/Correio

Vendedor de geladinho e canudinho de coco. Marceneiro de hotel e agenciador de bandas de pagode. Ex-traficante de drogas. Dono de restaurante, proprietário de uma loja de instrumentos musicais, estudante de Direito e advogado. Lutador de jiu-jítsu e professor de capoeira. Tudo isso em um só, Anderson Luiz Moreira da Costa, 38 anos, está livre para ter mil e uma personalidades.

Duas faces para esse homem é pouco. Em entrevista exclusiva ao CORREIO após sair da prisão do Rio de Janeiro, descobrimos que Anderson, como todos nós, é um sujeito múltiplo. A diferença é que ele tinha que esconder boa parte do seu passado. O encontro com a reportagem foi possível porque, no último dia 7 de maio, o juiz Alfredo José Marinho Neto, da 1ª Vara Criminal de Madureira, no Rio, o absolveu dos crimes de associação ao tráfico e porte ilegal de armas. 

Ao ganhar a liberdade, dois dias depois, a primeira atitude que Anderson tomou foi pegar o avião de volta para a capital baiana, onde viveu por 18 anos como o comerciante Adson Moreira de Menezes, que abriu um restaurante no Pelourinho, estudou Direito e virou advogado em Salvador. A segunda atitude ao deixar a prisão foi responder todas as questões levantadas pela reportagem especial Duas Faces de Um Homem, publicada pelo Correio no dia 13 de janeiro deste ano.

Livre das acusações, talvez a única faceta que não possa desempenhar daqui para frente seja justamente a de advogado. Um processo na Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA) vai definir se Anderson continuará exercendo a profissão – já que usou documentos por 18 anos com informações falsas, do nome à data de nascimento.

O resultado não chega a preocupá-lo. “Se cassarem minha OAB (carteira da Ordem dos Advogados do Brasil), estou disposto a estudar Direito por outros cinco anos”. Da mesma forma, vai tentar reverter o nome no diploma na Faculdade 2 de Julho. “Vou tentar reverter juridicamente com um pedido de titularidade em meu verdadeiro nome: Anderson”. 

Senzala
Adson Moreira de Menezes, personalidade assumida por Anderson na Bahia, teria nascido no dia 7 de julho de 1971. Já Anderson Luiz Moreira da Costa nasceu, de fato, no Rio de Janeiro, em 23 de setembro de 1970.

Ele recebeu o CORREIO em sua loja de instrumentos musicais, a Senzala, na Ladeira de São Miguel, Pelourinho, quase na Baixa dos Sapateiros. Filho de mãe solteira, contou como foi sua infância e adolescência entre duas regiões diferentes no Rio: os bairros de Madureira e Irajá.

“Minha mãe se envolveu com um homem casado. O cara não quis assumir, como acontece muito por aí. E minha mãe teve que esconder. Meu avô não poderia saber. Então, ela escondeu até nove meses”.   

É aí que explica o contexto do seu envolvimento com o tráfico. Anderson diz que não escolheu ser traficante. Segundo acredita, o próprio ambiente em que foi criado empurraria qualquer um a ser cooptado. “Só por tá ali você já é marginalizado, ainda que você não se envolva. Às vezes, tu tá só fumando um baseado com o camarada. E aí? Quem é ladrão?”. 

Anderson afirma que, acima de tudo, nunca deixou de trabalhar. Descia o morro para vender canudinhos de coco e sacolé, o nosso geladinho. “Sempre fui comerciante. Sempre!”. Os primeiros contatos com o crime ocorreram entre os 20 e 22 anos, em Irajá, onde morava com o padrasto.

Anderson admitiu ter se aproximado do tráfico. “Eu não era exatamente do tráfico. Tinha uma relação com aquelas pessoas. Eu não sou santo, cometi meus erros”. Chegou a ficar dois anos preso, entre 1994 e 1996, por associação ao tráfico. 

Mas, ele nega ter sido um dos autores do crime mais grave entre os que eram atribuídos a ele. Garante que sequer estava entre os 15 homens armados com fuzis que tentaram assaltar um carro-forte, em 12 de dezembro de 2000. Naquela noite, um segurança acabou morto após ação de um grupo de traficantes que haviam se reunido em uma espécie de consórcio do crime. 

(Foto: Reprodução)

Anderson bate pé firme que não participou do latrocínio. “Nunca matei ninguém”. Chegou a ser preso preventivamente duas vezes, em 2001 e 2003, durante a fase de inquérito. Mas, como não foi reconhecido pelas testemunhas, garante que não entrou no processo. De fato, a acusação de latrocínio sequer consta na sentença que o absolveu. 

Seu nome, acredita, foi levantado no inquérito porque ele andava com criminosos do Morro da Serrinha, em Madureira. Além disso, seu irmão, que tinha um nome muito parecido com o seu, era frequentemente confundido com ele. Chamava-se Vanderson Luiz Moreira Costa.

Apenas a inicial do primeiro nome é diferente. Vanderson acabou morto em confronto com rivais. “Meu irmão, sim, era traficante, foi preso lá várias vezes com drogas pela delegacia da área. Até ser morto. Isso ajudou a confundir mais ainda as coisas. Claro! Porque era meu nome, meu passado”. 

A primeira vez que foi preso pela acusação de latrocínio, em 2001, estava trabalhando em Teresópolis, região serrana. “Eu já nem morava no Rio de Janeiro na época. Me levaram para reconhecimento. Foi negativo, naturalmente”.

Acontece que o inquérito seguiu e a Justiça pediria novamente sua prisão. Em 2003, já morava em Salvador quando foi preso no Espírito Santo, onde foi encontrar uma namorada. “Monitoraram ela e me pegaram. Mas, novamente, não fui reconhecido pelos seguranças do carro-forte”.

Solto novamente, Anderson não seria mais encontrado por quase duas décadas. Antes mesmo dessas prisões, já havia começado a articular sua saída definitiva da capital carioca. Em novembro de 2001, ou seja, há quase 18 anos, Anderson resolveu que daria um basta no seu passado.  

Ainda que pagasse por todos erros, acreditava, a mancha de ex-presidiário e ex-traficante permaneceria. Dois meses depois, em janeiro de 2002, entrou em um cartório da capital baiana para se tornar Adson Moreira de Menezes.

“Ainda no Rio eu queria trabalhar, eu queria dirigir um táxi. Quando fui puxar o ‘nada consta’, ele não veio. Aí eu falei: ‘Poxa, cara, como é que eu vou fazer? Como é que eu vou trabalhar?’. Eu vim pra cá para fugir desse estigma. Eu queria uma nova vida. Eu queria mostrar pra mim mesmo que… ‘Pô, você não é esse cara, não’”.   

“Eu acreditava que o estigma estava em meu nome. Por isso, a saída que enxerguei foi mudar de nome. Não sei se foi o certo também. A arma que eu tinha na mão era aquela”.

Ele procurou o Cartório de Registro Civil do bairro de Nazaré, onde tirou uma nova certidão de nascimento – história que o CORREIO contou no mesmo especial. “Eu sabia que eu podia dizer que nunca havia sido registrado. É lei. Eles têm que registrar. E assim foi”. 

A partir da certidão de nascimento, Anderson fez um novo Registro Geral (RG) no Instituto de Identificação Pedro Mello, e tirou a sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Tudo como Adson.

Misturando baianês e carioquês na hora de falar, Anderson enfim respondeu porque escolheu Salvador. Nessa hora seu lado baiano aflora. “Rapaz, Salvador é uma cidade maravilhosa. O cara pode ser pobre em Salvador, mas vive bem de alguma forma. Tem praia pra todo o lado, o maior litoral do Brasil. Eu sabia que poderia viver relativamente bem aqui. Eu vim aqui pra viver”.

Capoeira
Aqui conheceu a capoeira. “Eu tinha que abaianar, né? Até mulher eu arrumei aqui na Bahia”. Também virou faixa preta de jiu-jítsu. A primeira forma de sustento, diz Anderson, foi o restaurante. Pagou R$ 12 mil pelo direito de usar o ponto alugado. “O cara tava se queixando, quis passar o ponto. Tava indo pro norte, parece, pro Ceará. Como eu já tinha esse feeling do empreendedorismo…”. 

Anderson na roda do Grupo Topázio: no retorno teve bolo e refrigerante (Foto: Arisson Marinho/Correio)

A mãe de Anderson, Sandra Maria Moreira, veio depois. “Minha mãe desfez as coisas dela no Rio, desfizemos algumas coisas que nós tínhamos. Agora era eu e minha mãe só”. Aliás, Anderson contou que enganou até a própria genitora. “Falei a ela que consegui na Justiça o direito de alterar meu nome. Não queria deixar ela preocupada”. A mulher com quem se casou na Bahia, a gerente comercial Fernanda Ferreira, 32 anos, também sempre acreditou que ele se chamava Adson. 

Fernanda estava grávida quando Anderson foi preso em agosto do ano passado.

“Tu imagina esse tempo todo como eu me sentia com minha família? Até meus filhos, cara. Eles só ficaram sabendo do problema todo depois que eu fui preso. Eles nunca souberam de nada errado meu. Porque eu não podia contar sobre a mudança de nome. Andava sempre com receio de que um dia eles descobrissem”.

Prisão
Em uma tarde de segunda-feira, 30 de agosto de 2018, Anderson foi preso próximo ao Restaurante Tropicália, ao lado da Cantina da Lua, no Pelourinho. Descarregava o carro de mantimentos para o estabelecimento, de propriedade dele e da mãe. Policiais vieram do Rio de Janeiro cumprir um pedido de prisão preventiva. “Foi o pior dia da minha vida. Me senti naquela cena de Cidade de Deus em que toca aquela música do Cartola: ‘Deixe-me ir, preciso andar…’” narra. 

Anderson sabia que não estava tão escondido assim. Em pleno Centro Histórico, alguém poderia reconhecê-lo e delatá-lo a qualquer momento. Aliás, policiais da 29ª Delegacia, de Madureira, chegaram a quase capturá-lo em 2003. “Eu sabia que o mesmo pessoal havia estado aqui em 2003. Não conseguiram me pegar, mas eu sabia que eles estavam aqui”. 

Chegou a pensar em se apresentar espontaneamente. Mas, o medo da cadeia o impedia. “Eu sabia que ia acontecer um dia. Eu não queria que fosse assim. Eu queria me apresentar. Mas poxa, cara, você sabe o que é você ir para um lugar que você não sabe o que vai ser? Se eu me apresentasse e fosse para um lugar com condições decentes, com condições higiênicas, com cursos e etc. Mas, caramba, para voltar para onde eu tava, bicho?”.

Como descobriram Anderson? Bom, ele acredita que alguém o viu e o denunciou. “Eu não fazia mais questão de me esconder. Sabe aquela coisa do cara que quer se suicidar mas não tem coragem? ‘Vou deixar que alguém me empurre aqui’”. Anderson tinha receio que a Justiça não tratasse seu caso da maneira devida. 

“Eu acredito na Justiça ainda. Mas tenho medo das injustiças. Quem não tem medo das injustiças? Se a Justiça sempre fosse justa tava bom”. Hoje, Anderson enxerga sua última prisão como algo libertador. “No final das contas me libertou, né? Estou totalmente livre agora”.

Palestras 
Foram nove meses na unidade Jonas Lopes de Bangu 4, no Rio. Talvez pela nova vida que construiu, teve um tratamento diferenciado. Foi trabalhar na biblioteca e deu palestras para os presos sobre sua história. “Não vou dizer que a direção foi hospitaleira, mas tive um tratamento digno. Fui chamado pelo diretor e ele disse que queria me ajudar. Os presos se espelharam em minha história”. 

Anderson diz que se tornou referência por causa do discurso contrário ao encarceramento e a favor da educação. “Meu discurso era ressocialização, humanização. Mostrava para eles que traficante de drogas é ‘bucha’ nas mãos dos peixes grandes. Os caras trazem drogas de outro país para eles ficarem aqui se matando. E os caras lá curtindo de boa. Isso é ser bucha!”. 

“Tem pessoas de bem lá na cadeia. Tem pessoas sendo injustiçadas. Tem pessoas inocentes que não são tratadas de acordo com a legislação. Pessoas que não têm nenhuma assistência jurídica”, defende. 

Anderson lembra com emoção de sua absolvição. “Eu olhei na cara do juiz e disse: doutor, eu só quero voltar a viver a vida que eu reconstruí”. De acordo com os registros do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, após quase 20 anos, faltaram provas para condenar Anderson por porte de armas e associação ao tráfico.

Apesar de terem ocorrido há muito tempo, os crimes não prescreveram justamente porque Anderson não era encontrado pela Justiça. Como o processo ficou no sistema, a prescrição foi suspensa. Uma primeira condenação por associação ao tráfico, diz Anderson, já havia sido cumprida. A segunda acusação pelo mesmo crime não foi comprovada. Nem mesmo o “vulgo” de Anderson, que seria conhecido por “Espinha”, foi confirmado. 

“(…) Nenhuma das testemunhas ouvidas em Juízo confirmou ter o acusado o apelido de ´espinha’ e/ou ser envolvido com o tráfico”, destaca trecho do processo ao qual o CORREIO teve acesso.

“Esse era o vulgo de um traficante lá. As pessoas confundiam comigo porque tenho essa cicatriz no abdômen, que lembra uma espinha”, explica Anderson, que na verdade era conhecido como “andinho”. Perguntado sobre a origem do ferimento, Anderson restringiu-se a dizer que foi causada por disparo de arma de fogo. 

A sentença do juiz segue explicando ponto a ponto até a absolvição sumária: “(…) não ficou comprovado a associação do acusado Anderson, de forma estável e permanente, para fins de tráfico. Em face do exposto, julgo improcedente a pretensão punitiva (…). Expeça-se alvará de soltura, imediatamente”.

Agora, com o passado “limpo”, finalmente pôde conhecer a filha, a pequena Maria Bella, que estava na barriga de sua esposa quando foi preso. “Ah, foi uma dádiva poder vê-la. Um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Aos poucos ela vai se acostumando com o cheiro do papai”.  

Anderson segura Maria Bella: novo recomeço ao lado da família (Foto: Arisson Marinho/Correio)

Dinheiro do tráfico?
Após a prisão em Salvador, houve quem o condenasse como alguém que devia pagar à Justiça o que devia. Houve quem o aplaudisse por ter se transformado. Houve quem o acusasse de usar o dinheiro do tráfico para fazer sua vida em Salvador. Anderson diz que nos primeiros anos morou de aluguel em um apartamento quitinete. O próprio espaço do restaurante também é alugado. “Meus filhos todos estudam em escola pública. Que droga de traficante é esse que eu fui?”, pergunta Anderson, que tem um Fiat Uno, um Fusca e mora em um apartamento no bairro do IAPI. 

“Isso aqui onde você tá é um projeto de dois anos. Não é fachada, não”, diz ele, referindo-se à loja de instrumentos. “Como é que eu vim com dinheiro pra cá? Estou há 18 anos aqui trabalhando em um restaurante em um espaço alugado. Ganhei meu dinheirinho e investi. Não pode investir? Tem que ser burro? Tem que trabalhar pra que? Só pra comer? Eu sou um cara trabalhador. Sei ganhar dinheiro. Fui camelô, cara!”.

Nos 18 anos em Salvador, o nome de Adson passaria completamente limpo não fosse um processo de violência doméstica, talvez o único momento em que se reconectou a Anderson. Foi denunciado pelo Ministério Público por suposta prática de lesão corporal qualificada, ocorrida em outubro de 2008. O caso foi registrado na 1ª Vara de Violência Doméstica Familiar contra a Mulher. 

A vítima seria a professora de inglês coreana Mônica Young Ae Yu e teria ocorrido no interior do Motel Céu Azul, no bairro do Barbalho. Antes do julgamento, porém, o processo foi finalizado. “Foi uma namorada. Ela lutava tae-kwon-do e capoeira. A mulher era valente. Não posso dizer que ela me bateu. Mas foi um desentendimento. Talvez eu possa ter me excedido. Foi uma briga de casal que luta artes marciais, sabe?”. 
 
Doutor Adson
Estabelecido em Salvador, Anderson queria subir na vida. Não só financeiramente. Quis conhecer as leis. Assim, diz ele, poderia compreender um pouco o estigma de ex-presidiário que carregou por anos antes de vir para a Bahia. “De onde eu vim, faculdade é uma coisa muito distante. Mas é só se aproximar que você percebe que o bicho papão não é tão feio assim”.

Anderson, o segundo da esquerda para direita, com colegas de curso (Foto: Reprodução)

Como Adson, fez vestibular na Faculdade 2 de Julho, no Garcia, e se matriculou no curso de Direito. A quantidade de informações no início do curso o assustou. Pensou em desistir, mas recebeu o conselho de uma secretária que o fez voltar atrás. “A coroa nunca tinha me visto, cara. Me olhou assim e disse: ‘Faz isso não! São cinco anos. Se você fizer o curso esses cinco anos vão passar, se você não fizer o curso esses cinco anos vão passar do mesmo jeito. Se não tiver apertando seu orçamento, faça’. Poxa, sabe aquele conselho que você não espera? Vindo de uma pessoa que não te conhece, né?”.

Não só deu continuidade ao curso como se destacou entre os alunos e se apaixonou pelo Direito. Tanto que, quando fala dessa época, dos trabalhos em grupo, dos seminários, se empolga. “Com as nuances do Direito você percebe que a lei não é algo engessado. As adversidades que passei na vida me ajudaram a valorizar ainda mais o curso. Hoje sei o quanto foi importante adquirir aquele conhecimento. Ninguém tira o conhecimento de você. Ninguém vai lhe roubar isso”. 

Fez grandes amizades na faculdade. “Você fica cinco anos com a mesma galera e vai se familiarizando, né? Eu chegava cansado do restaurante e pegava carona para voltar. Não tinha nem carro. Pô, brother, como é que eu vim com dinheiro pra cá?”. Anderson, no caso Adson, se formou em Direito em 2010. Bacharel, fez o teste da OAB. Passou na segunda tentativa. 

Garante que não chegou a atuar em grandes causas como advogado. “Nunca usei minha OAB para ter benefício nenhum a não ser o conhecimento. Advoguei em coisas pequenas como direito do consumidor. Mas eu sabia que se eu ganhasse uma causa relevante, amanhã ou depois o cliente poderia se prejudicar se minha OAB fosse cassada. Meu interesse não era ganhar dinheiro advogando. Eu sou comerciante”.  

Como estudante de Direito, estagiou justamente dentro do Complexo Penitenciário da Mata Escura. Ali ajudou a analisar processos dos presos. Depois da experiência de palestras em Bangu 4, promete continuar o trabalho aqui em Salvador. “Vejo agora como uma missão”. Vai usar uma de suas mil e uma faces para tentar inspirar pessoas a se transformar. “Eu me vejo neles. Muita gente ali que só precisa de um empurrãozinho para ter uma nova vida”. Claro, sem precisar mudar de nome.

‘Conheci ele como Adson e ainda não me acostumei’, diz esposa
“Você quer ser chamado de Anderson ou Adson?”, perguntamos ao nosso homem de duas faces ao iniciarmos a entrevista. O próprio hesitou na resposta. “Eu na verdade sou o Anderson. Na verdade o Anderson ficou no passado. Ah, chama de Anderson! Aliás, pode chamar de Adson! Adson ou Anderson! Aqui na Bahia eu sou Adson, né? A identidade aqui na Bahia é Adson”.

A esposa então sugeriu: “Chama de Carioca! Todo mundo aqui na Bahia chama ele de Carioca”, disse Fernanda Ferreira. Anderson e Fernanda estão juntos há 4 anos e têm dois filhos. “Eu conheci ele como Adson. E ainda não me acostumei a chamar ele de outra coisa. A mãe dele chamava ele de ‘Andinho’”, diz Fernanda. “Todo mundo merece uma segunda chance. Ele construiu a segunda chance dele e estarei sempre ao seu lado independente do seu passado”, avisou a esposa.  
   
Amigos celebram retorno de ‘Carioca’
Após chegar em Salvador, Anderson deu um tempo em casa. Ficou com a família alguns dias. Mas, sempre ativo, quis logo voltar à rotina no restaurante e nos treinos de capoeira e jiu-jitsu, onde é conhecido como “Carioca”. O grupo Topázio o recebeu com roda especial, bolo e refrigerante. 

Mestre Dinho, que comanda o grupo, sempre acreditou que, independente do seu passado, Anderson é um homem regenerado. “Carioca é um cara da minha total confiança. Se um dia ele fez isso, se arrependeu. Ficamos muito tristes e surpresos quando ele foi preso, mas tinha certeza que ele ia retornar pra gente”, disse Raimundo dos Santos, o Dinho.

Com a Associação Fight Brothers, aprimorou os conhecimentos que adquiriu no jiu-jitsu ainda no Rio de Janeiro. Aqui, chegou à faixa preta. Fazia questão de contribuir para a formação de jovens da academia. “Um cara muito correto no dia a dia. Tinha uma visão social muito grande. Já ajudou muitos garotos a participar de competições. Ajuda financeira mesmo. Muitos almoçavam de graça lá no restaurante dele”.

Colegas da faculdade 
Quando os antigos colegas da Faculdade 2 de Julho souberam da soltura do amigo, o qual chamavam de Adson, ficaram radiantes. O advogado Antônio Américo Prates Fontenelle, 61 anos, um dos colegas que colou grau com Adson em março de 2010, se emocionou. 

“A gente até volta a acreditar no sistema, né? Um sistema onde o homem pode ter uma segunda chance. É uma notícia muito gratificante e fica aquele sentimento de que a gente não tava errado. Além da boa índole e bom caráter, Adson é um cara muito, muito gente boa. Adson é amado por todos”. 
 
De fato, Anderson é adorado por onde passa. Dos feirantes de São Joaquim aos taxistas do Pelourinho. “Ali é correria. Quem conhece sabe que é trabalhador. Sempre muito educado. Pra mim sempre foi um homem de bem”, disse o comerciante Clarindo Silva, da Cantina da Lua, seu vizinho de comércio. “Eu queria agradecer a todos esses amigos, a todas as pessoas que participaram desse meu processo de transformação. Cada um deles foi importante”, reconheceu Anderson. 
 

Processo na OAB segue sem desfecho
Assim que foi anunciada a prisão de Anderson Luiz Moreira da Costa, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA) abriu um processo disciplinar para apurar o caso. O processo está em trâmite e ainda não tem uma conclusão. Oficialmente, o advogado Adson Moreira de Menezes consta como Regular no Cadastro Nacional dos Advogados (CNA) porque ainda não houve sentença judicial com trânsito em julgado.

A presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-BA, Simone Nery, explicou em nota que “o processo disciplinar tramita em sigilo, até o seu término, só tendo acesso às suas informações as partes, seus defensores e a autoridade judiciária competente”. 

Adson Moreira de Menezes foi aprovado no VI Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil. Fez as provas da primeira fase em 05/02/2012 e da segunda fase em 25/03/2012. Segundo Simone Nery, para fazer a carteira da OAB, Adson teve que apresentar uma série de documentos. Entre eles certidões negativas das justiças estadual e federal.

2 de Julho 
Já a Faculdade 2 de Julho, onde Anderson cursou Direito como Adson, diz que o aluno se matriculou na instituição com documentos legais. O documento de conclusão do ensino médio tem certificado de autenticação em cartório de registro público e, portanto, condizente com as regras da chamada “fé pública”. “As questões sobre a autenticidade ou contestação desta em relação ao documento referido são pertinentes à esfera criminal cabendo a sua apuração às autoridades policiais”, escreveu a faculdade em nota.  

Se não conseguir manter o diploma ou tiver sua OAB cassada, Anderson insiste que vai fazer o curso novamente.

“Estou disposto a fazer tudo novamente. Mais cinco anos de faculdade. Aí sim vou estar consolidando minha história. Aí sim vai ser um final feliz. Quem sabe eles não me dão uma bolsa? Nada vai me impedir de dar a volta por cima”.

TJ-BA
O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA), ao qual é ligado o Cartório de Registro Civil de Nazaré, onde Anderson fez sua nova certidão de nascimento, disse que determinou o bloqueio judicial do documento como medida de segurança. Ao mesmo tempo que identificou a funcionária responsável pelo registro. 

A servidora Sônia Maria Souza e Sampaio foi a responsável pelo ato. “Porém o fez através de ordem judicial”. Neste caso, o TJ-BA diz não ver motivos para punir a funcionária, que hoje se encontra aposentada.

Do primeiro crime à sentença de absolvição

A trajetória de Anderson Luiz Moreira da Costa, como ele mesmo diz, não é de nenhum santo. Por outro lado ele garante que, em determinado momento, quis mudar completamente de vida. Um dos motivos desse desejo de transformação seria os crimes que injustamente teriam sido imputados a ele.

Abaixo, eis o histórico criminal atribuído a Anderson. Boa parte dele negado pelo ex-réu, que diz ter sido perseguido pela sua origem no morro, além de alvo de confusões com seu nome por conta do seu irmão quase homônimo (esse, sim, traficante) e outros bandidos com nomes semelhantes.   

Maio de 1994 –  Um inquérito da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) do Rio apontava que traficantes de diversas comunidades haviam se reunido em uma espécie de consórcio criminoso. Anderson cumpre dois anos de prisão entre 1994 e 1996

1998 – Investigação policial indiciou seis traficantes do Morro da Serrinha, um deles seria Anderson. O juiz Vinicius Marcondes de Araujo imputa aos denunciados o crime de tráfico de drogas e associação ao tráfico no Morro de Serrinha. Um deles era Anderson Vinicius Simplício, que seria uma outra identidade de Anderson Luiz. Hoje, Anderson diz que se tratava de um traficante com o vulgo de “espinha” e que aí se iniciou a confusão com seu nome e cicatriz, parecida com uma espinha 

4/11/98 – Anderson é preso por porte de arma

05/07/00 – Anderson é preso novamente por porte de arma

Dezembro de 2000 –  Na noite de 12 de dezembro, na BR-101, um bando de 15 assaltantes aborda um carro-forte em um trecho entre Campos dos Goytacazes e Macaé, no Norte Fluminense. Atingido no pescoço e na cabeça, o vigilante Alexandre Henrique Moreira, 29 anos, morre na hora. Os assaltantes fogem levando cerca de R$ 700 mil.  

15 de abril de 2001 – Anderson foi preso enquanto voltava de Teresópolis, cidade turística na Região Serrana do Rio, acusado de fazer parte do assalto. Agora ele responde por latrocínio. Mas, segundo diz hoje o ex-réu, os seguranças do carro forte não o reconheceram como um dos bandidos. 

19/01/01 e 23/05/01 – Anderson é preso por porte de arma

Abril de 2003 – Anderson é preso em uma rodoviária de Vila Velha, no Espírito Santo, quando encontrava uma namorada, monitorada pela polícia. Permaneceu em uma penitenciária estadual por 55 dias, de 25 de abril a 18 de junho, até obter “relaxamento de prisão”. Novamente, diz que nada foi comprovado contra ele. A partir daí, seu paradeiro se tornou desconhecido.

2013 – A pedido do Ministério Público do Rio, Anderson foi citado em edital porque ninguém o encontrava. A prescrição dos crimes de associação ao tráfico, tráfico e porte de armas, em dois processos diferentes, foi suspensa até que ele aparecesse. Por outro lado, a acusação de latrocínio ficou apenas na fase de inquérito. Segundo diz Anderson, como não havia comprovação de sua participação, seu nome não fez parte do processo.  

11/06/2013 – Expedido um novo mandado de prisão no TJRJ por associação ao tráfico e porte de arma

26/07/2016 – O processo é arquivado

19/07/2018-  Foi requerido o desarquivamento 

27/07/2018 – O processo foi desarquivado 

01/08/2018 – Com Anderson localizado em Salvador, juiz determinou sua prisão

30/08/2018 – Anderson é preso no Pelourinho enquanto descarregava as compras do seu restaurante e levado para Bangu 4, no Rio. Na época, foi divulgado que haviam três mandados de prisão em seu desfavor por associação ao tráfico, porte de arma e latrocínio. Mas, Anderson diz que o de latrocínio já havia sido cumprido em uma das suas prisões anteriores. A polícia também divulgou que havia um mandado na 2ª Vara Federal Criminal. Porém, pesquisa realizada pelo CORREIO não indica qualquer processo em aberto com seu nome.       

07/05/2019 – Após nove meses preso, sentença foi dada pelo juiz: “Não ficou comprovado a associação do acusado Anderson, de forma estável e permanente, para fins de tráfico”. Os portes de arma também foram rejeitados.

Alexandre Lyrio – Correio 24h

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