Escolas e pais tem papel relevante para reverter a violência e o discurso de ódio entre crianças e jovens
Metade dos doze ataques a escolas ocorridos no Brasil nos últimos 20 anos aconteceram a partir de 2018, mostra um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz. Apenas este ano, o país registrou três episódios do tipo, resultando em cinco mortes e deixando 16 pessoas feridas. Entre os fatores envolvidos nesses atentados, especialistas identificam a facilitação do acesso a armas de fogo e o fortalecimento dos discursos de ódio.
Dois desses casos aconteceram na Bahia, o primeiro em 2002, no extinto Colégio Sigma, em Salvador, deixando duas alunas mortas. O mais recente ocorreu no último mês de setembro, em uma escola municipal de Barreiras, provocando a morte de uma aluna. Em ambos, os autores dos atentados eram alunos da escola e portavam armas de fogo, embora a adolescente cadeirante assassinada no interior baiano tenha sido atacada com um facão.
“Em mais da metade dos casos, e nesse caso do Espírito Santo não foi diferente, essa arma foi obtida dentro da residência do jovem. Então quando a gente tem um governo que incentivou as pessoas a comprarem arma para ter em casa, facilitou esse processo de compra, aumentou a quantidade de munições que cada pessoa pode ter, são todos fatores que contribuem para a gente ter mais casas com arma de fogo”, analisa o gerente de projetos do Instituto, Bruno Langeani.
Ao citar o Espírito Santo, Langeani se refere ao ataque mais recente ocorrido no Brasil, mês passado, em Aracruz, quando um adolescente matou quatro pessoas e deixou outras 12 feridas em duas escolas do município, uma particular e uma estadual. As duas armas usadas no crime pertenciam ao pai dele, um policial militar. O revólver usado pelo autor do atentado de Barreiras também pertencia ao pai dele, um policial aposentado. Além da arma de fogo e do facão, o adolescente também portava um canivete.
Banalização
Na avaliação de Langeani, há um processo de banalização do uso de armas de fogo, não só pelo discurso armamentista encampado pelo governo federal, mas também como consequência de medidas adotadas. “O presidente facilitou o processo de autorização para que crianças e adolescentes possam frequentar clubes de tiro. Ele vetou alguns dispositivos para exigir que, por exemplo, a pessoa que registrasse arma tivesse que declarar ter um cofre para manter essa arma longe de crianças e adolescentes”, conta o gestor de projetos.
Langeani considera que o isolamento resultante da pandemia, com a suspensão das aulas presenciais por mais de um ano, de certa forma fez com que crianças e adolescentes perdessem o treino para o convívio social. “A gente tem visto um crescimento desse processo de radicalização de discurso, um discurso de violência, de classificar o diferente como ruim, de classificar o que não se enquadra como ruim e muitas vezes classificar um como algo indesejável, que tem de ser eliminado”, declara.
Professor do curso de psicologia da Unijorge e psicólogo clínico, Vitor Mascarenhas ressalta a dificuldade em lidar com o contraditório como um fator cada vez mais presente nas relações sociais, o que ocorre também nos ambientes escolares. “Os discursos são ‘eu penso dessa forma, quem pensa diferente eu não quero, está errado’. Não existe isso, a gente tem que aprender a discutir, senão a gente acaba em uma sociedade falida, o que vai gerar essa violência”, pondera.
Mascarenhas comenta que estudos atuais indicam um aumento da prevalência da violência escolar, concretizada sobretudo na forma de bullying. Essa e outras formas de violência psicológica, avalia, criam um terreno fértil para a ocorrência de agressões físicas e verbais. Em todos os doze casos de ataque levantados pelo Instituto Sou da Paz, o autor tinha relação com a escola, sendo aluno em oito deles e ex-aluno nos demais.
Entre os fatores envolvidos em atos complexos como esses atentados, o psicólogo destaca ainda a falta de empatia, defendendo a necessidade de buscar entender os sentimentos do outro. Sua recomendação para os pais é de atenção a questões demonstradas por crianças e adolescentes no comportamento cotidiano, como baixa autoestima e autoconfiança, e dificuldades de socialização, para que possam atuar como facilitadores de relações interpessoais saudáveis.
Trocar ódio por amor, respeito e empatia
A oferta de turmas desde a educação infantil ao ensino médio cria uma comunidade escolar composta por alunos de várias idades no Colégio Vitória-Régia, que precisa buscar a melhor forma de abordar o respeito às diferenças com cada um dos grupos. Os mais velhos, por exemplo, sempre trazem à tona as discussões sobre a liberdade de expressão, conta a orientadora educacional da escola, Bárbara Costa.
Bárbara vê o ambiente escolar como propício para o exercício do direito à expressão, mas ressalta que há limites, pois essa liberdade não pode incluir ofensas. “A gente vê muito discurso de ódio, por questão de intolerância por diferenças culturais e religiosas, questão étnica, orientação sexual e posicionamento político. A gente busca, na medida do possível, transformar esse discurso para praticar o amor fraternal, o respeito e a empatia”, declara.
Além de abordar os temas citados de forma transversal nas disciplinas e também em atividades específicas, o Colégio busca conhecer o contexto e histórico familiar de cada aluno, e ficar atento a sinais de conflito entre alunos, seja no ambiente da escola ou em grupos de whatsapp, conta a orientadora.
Para o presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino da Bahia (Sinepe-BA), Jorge Tadeu Coelho, o longo período longe do convívio escolar, em decorrência da pandemia, é um fator importante nessa equação. Ele aponta uma redução na capacidade de simbolizar a violência, que antes era quase exclusivamente externada por explosões verbais e não por atos..
“No retorno às aulas presenciais, começamos a observar nas falas de muitos diretores que mesmo as crianças pequenas estavam inquietas, agressivas… Isso aconteceu no mundo todo, com pequenas coisas do cotidiano. Há dez anos era mais raro uma briga de trânsito virar uma agressão física”, comenta Coelho.
Nas redes públicas, o tema também tem recebido atenção, tanto no combate a boatos envolvendo ameaças quanto na prevenção aos discursos de ódio. “A Secretaria da Educação do Estado destaca que a escola é um ambiente de formação cidadã, onde estão professores, coordenadores pedagógicos, gestores e profissionais da Educação comprometidos com o processo de ensino e aprendizagem dos alunos”, afirmou em nota.
Também por nota, a Secretaria Municipal da Educação informou que “está acompanhando todas as escolas da rede, e até o momento não foi evidenciada nenhuma ação que reverbere ataque de ódio nas unidades da rede municipal. (at)