Um eventual perdão das dívidas de famílias de baixa renda que contrataram o empréstimo consignado do Auxílio Brasil deve ser discutido em conjunto com a Caixa Econômica Federal, um dos principais operadores da política, afirma à Folha o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron.
Ele não descarta que o próprio banco tenha de arcar com os prejuízos, caso a inadimplência dispare em meio a dificuldades de beneficiários em pagar as prestações.
A linha de financiamento foi lançada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) e implementada pelo banco público entre o primeiro e o segundo turno das eleições, a despeito de alertas e críticas de especialistas sobre o risco de superendividamento da população mais vulnerável. O Banco do Brasil se absteve de ofertar a linha, assim como grandes bancos privados.
A presidente da Caixa, Daniella Marques, é uma das aliadas mais fiéis ao agora ex-presidente da República, derrotado nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ela ainda está empossada no cargo, uma vez que a sucessão no comando do banco aguarda trâmites burocráticos.
Um a cada seis beneficiários do Auxílio Brasil e do BPC (Benefício de Prestação Continuada) contratou o empréstimo consignado, totalizando R$ 9,5 bilhões em desembolsos até 1º de novembro, em meio ao período eleitoral. A recomendação do grupo técnico da transição foi suspender a modalidade.
O ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, disse ao jornal O Estado de S. Paulo que há uma proposta em estudo no governo para anistiar os endividados do consignado do Auxílio Brasil. Ele não deixou claro, porém, se isso recairia sobre os cofres do banco ou, mais diretamente, da União.
Ceron afirma que a discussão ainda não chegou ao Tesouro Nacional, mas diz ser contra a política de consignados para famílias do Auxílio Brasil. Ele defende analisar quais famílias não conseguirão honrar os compromissos e discutir uma solução com a Caixa, por ser o banco que mais aderiu à modalidade. “Tem uma discussão com a própria instituição financeira, que arcou com essa política”, diz.
Questionado se a perda poderia ficar com a Caixa, ele afirma que “é uma possibilidade”. “Isso é o que acontece numa transação financeira normal.”
Ele ressalta, no entanto, que nem todos os R$ 9,5 bilhões devem ser perdidos. Para o secretário, é necessário haver uma análise técnica do tema, envolvendo, inclusive, órgãos de controle para detectar as condições de formulação da política.
Ao justificar seu posicionamento, Ceron avalia que o programa social é desenhado para assegurar uma renda de sobrevivência às famílias, e a possibilidade de contratar financiamentos com desconto nessas parcelas cria “um problema futuro inescapável”.
“É óbvio que uma família em situação de extrema pobreza, com filho pequeno, que precisa comprar remédio, alimentos, coisas de subsistência, se tiver a oportunidade de ter acesso ao recurso de forma rápida, vai fazer e depois busca como resolver. Mas esse depois acaba se transformando em uma bola de neve”, afirma. “Tenho muita dificuldade, como técnico, de entender qual é o mérito dessa política.”
Após a repercussão sobre a possível anistia, Wellington Dias afirmou que o governo deve incluir os casos dessas famílias no programa Desenrola Brasil, promessa de campanha para auxiliar na renegociação de dívidas de até 80 milhões de pessoas que estão inadimplentes no país.
A proposta ainda não foi formalmente apresentada pelo novo governo. No esboço feito durante a campanha, o foco seria a repactuação de débitos como contas de luz, água e alimentos. O público seria o de famílias que recebem até três salários mínimos.
O funcionamento prevê um fundo garantidor, que serviria de lastro para as renegociações. Esse tipo de fundo costuma arcar com as prestações em caso de inadimplência, reduzindo o risco de quem financia —por isso, o efeito é uma taxa de juros menor.
“Tão logo o projeto esteja pronto, certamente o presidente Lula vai lançar. E essa área relacionada ao Bolsa Família será tratada entre outros endividados do Brasil inteiro”, afirmou Dias.
O risco de superendividamento de famílias de baixa renda devido ao consignado do Auxílio Brasil foi alvo de alerta em documento formulado por um comitê de funcionários e ex-dirigentes da Caixa e enviado a Lula em 30 de novembro.
No relatório, o grupo também sugeriu a revisão da taxa de juros aplicada sobre contratos já firmados, equiparando ao nível do menor consignado oferecido pelo banco.
Na Caixa, a taxa cobrada é 3,45% ao mês, levemente menor do que o teto de 3,5% ao mês fixado pelo Ministério da Cidadania. No entanto, os juros cobrados de beneficiários do Auxílio Brasil são mais elevados do que os do consignado para aposentados e pensionistas do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), de até 2,14% ao mês.
A regulamentação do Ministério da Cidadania estipula também que os tomadores de crédito têm até dois anos, em 24 parcelas mensais e sucessivas, para concluir o pagamento da dívida. Caso o beneficiário perca o direito ao Auxílio Brasil e o empréstimo ainda não tenha sido quitado, a dívida permanece.
A motivação da Caixa ao oferecer essa linha de crédito chegou a ser questionada pelo Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União), que apresentou no fim de novembro um novo pedido para que a corte avaliasse o tema, diante da decisão do banco de restringir o acesso ao consignado do Auxílio Brasil após as eleições.
Em nota divulgada na ocasião, a Caixa disse reiterar o “caráter técnico, bem como a regularidade do consignado no Auxílio Brasil”. “O banco destaca que a operação de crédito foi criada por lei e que a área técnica do TCU acompanha o caso desde o mês de outubro, sem ter identificado qualquer irregularidade promovida pela Caixa.” (Política Livre)