Com muitas pessoas em quarentena e a cidade vazia, restam nas ruas de São Paulo os desabrigados, que só podem voltar ao albergue à noite e passam o dia perambulando pelas calçadas ou à procura de um ganha pão. O morador de rua Maycon, de 34 anos, ganha a vida vendendo água, pano, distribuindo panfleto no farol ou montando palco em dia de grandes eventos. Mas tudo parou após a pandemia do novo coronavírus.
“Pessoal está com medo de chamar para bico. Antes do coronavírus, vinham até o albergue buscar a gente para trabalhar. Até os que pagavam 50 reais para eu trabalhar 10 horas por dia carregando peso não estão vindo mais”, conta ele, que agora depende exclusivamente de doações e do Bolsa Família para sobreviver. “A coisa está feia até para o pedinte, porque as pessoas estão com medo de se aproximar. Está difícil viver nesse caos”, completa.
Richard, de 30 anos, está na mesma situação: ele vendia pano no semáforo, mas está sem conseguir trabalhar pela falta de movimentação. “Faz uma semana e meia que estou assim, sem dinheiro”, afirma. Para além do lado financeiro, ele trata um câncer no estômago e tem medo de a baixa imunidade lhe deixar ainda mais vulnerável à infecção pelo coronavírus.
O coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, padre Júlio Lancellotti, organiza doações para moradores de rua todos os dias na Paróquia de São Miguel Arcanjo, na zona leste da cidade, e relata que há muitos jovens querendo voltar para a família neste momento. “É dramático ver o sofrimento. Um deles me questionou: ‘a gente já vive no meio de tanta desgraça… será que vamos sofrer com isso também?’.” O religioso analisa que a pandemia minou diversos setores da economia informal da qual a população de rua se sustenta.
“Com a menor circulação de carros, eles não estão conseguindo trabalhar em estacionamento, limpeza de retrovisores ou lava-rápidos. Está tendo também uma redução grande no número de doação de alimentos à noite para aqueles que dormem na rua”, explica. “O coronavírus está pesando muito sobre essas pessoas. Sem contar que eles não têm como e onde estocar alimentos”, completa.
Visando amenizar esse impacto negativo, a Defensoria Pública da União lançou na quarta-feira, 18, um ofício com recomendações emergenciais à Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads).
“A peculiar situação das pessoas que se encontram em situação de rua demanda cuidados especiais, sobretudo se considerarmos o altíssimo poder de transmissibilidade da doença, bem como o fato de que, não raramente, tais indivíduos são portadores de doenças pré-existentes que os qualifica justamente como grupo de risco”, alegam os defensores no documento.
A cartilha contém oito sugestões, solicitando o reforço da higiene, o fornecimento de alimentos e o uso de espaços públicos educacionais e esportivos fechados para abrigar a população de rua. Enquanto isso, o Ministério Público do Estado de São Paulo sugeriu via ofício na segunda-feira, 16, a realização de obras emergenciais para reforçar a baixa ventilação natural dos albergues, já que muitos carecem de janelas e a falta de aeração pode aumentar a disseminação de doenças infectocontagiosas. Ao todo, o município conta com 89 centros de acolhimento, totalizando 17,2 mil vagas.
Procurada pela reportagem, a Smads informou apenas que “recebeu as duas notificações e prestará os esclarecimentos solicitados”. Maycon e Richard, porém, contam que não presenciaram obras e continuam sem acesso a locais públicos para se abrigar. Na quinta-feira, 19, ativistas da Pastoral do Povo de Rua flagraram policiais da Guarda Civil Metropolitana coagindo moradores de rua, em busca de isolamento, a saírem do parque da Mooca.
Enquanto as iniciativas mais estruturais não são tomadas, moradores de rua contam que dependem apenas da Pastoral do Povo de Rua e outras ONGs para conseguir insumos e retaguarda fora dos albergues. A organização católica abriu a Casa de Oração do Povo da Rua, no centro de São Paulo, para acolher em regime de quarentena os desabrigados com suspeita do coronavírus. O local tem capacidade para receber, com o devido isolamento, até 50 pessoas.
Caio Nascimento* – Terra