No primeiro dia do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, o número de questões que abordam igualdade de gênero foi destaque na prova. Perguntas sobre rio Tietê, MC Fioti e matrizes africanas também chamaram a atenção.
Temáticas sensíveis ao governo Bolsonaro, como causa LGBT, Era Vargas e ditadura militar, ficaram de fora do exame. Não houve questões sobre a pandemia, nem sobre qualquer tema relacionado a vacinas. A prova foi considerada bem elaborada e equilibrada por professores e passou longe de polêmicas.
Neste domingo, 17, os participantes do Enem responderam 90 questões nas áreas de Linguagens (Português e Língua Estrangeira) e Humanas (História, Geografia, Filosofia e Sociologia). A Redação teve como tema “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”, apontado pelos professores como pertinente, especialmente em um ano marcado pelo isolamento social.
“Em geral foram provas tradicionais, com conteúdos dentro do esperado e grau de dificuldade equilibrado. O que se destacou nessa prova foram as temáticas nas questões”, diz o gerente de Inteligência Educacional e Avaliações do Poliedro, Fernando da Espiritu Santo.
O professor considera que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) acertou ao trazer seis questões sobre igualdade de gênero. Dentre elas, destacam-se uma sobre a diferença salarial entre os jogadores Marta Silva e Neymar Júnior e outra sobre o assédio direcionado às mulheres em espaços públicos, acompanhada por uma imagem com os dizeres “Para nós, a rua é um campo de batalha”.
Para o diretor do Curso Anglo, Daniel Perry, o Enem 2020 seguiu o padrão consolidado, com análise de textos, imagens e mapas, permeado por temas sociais e contemporâneos. “A gente pode considerar uma prova que fugiu das polêmicas. Uma prova mais neutra, sem incitar debates aprofundados ou acalorados sobre temas delicados da contemporaneidade.”
Redação
A Redação teve o tema elogiado por professores. “O tema corresponde a todas as expectativas que se possui sobre a Redação do Enem: é atual, de fundo social e se caracteriza por ser um problema deparado pela sociedade e, portanto, favorece a proposta de intervenção”, diz a coordenadora de Português do Colégio Etapa, Simone F. G. Motta.
O professor de Português do Colégio Bernoulli, Marcelo de Souza Batista, considera o tema ótimo, mas pondera que os estudantes podem ter dificuldades em compreender a proposta na totalidade. “Acredito que muitas pessoas vão ter problemas com a palavra ‘estigma’. Há quem não saiba o que significa e se prejudique.” Para ele, o estudante deveria tratar sobretudo sobre os preconceitos direcionados às pessoas com doenças mentais.
A abrangência do tema permite que assuntos que estiveram em alta durante o ano passado sejam mencionados. “Tratamentos, como eletrochoque e internação em manicômios, (foram debatidos) como um certo reforço das políticas públicas ao discurso capacitista e até mesmo à estigmatização”, diz a coordenadora de Redação do Poliedro, Maria Catarina Bózio, que não se surpreendeu com o tema e já havia discutido assunto semelhante com os alunos.
Ainda que o estudante não tenha trabalhado o tema em sala, o professor do Sistema COC by Pearson, Rodrigo Noronha, ressalta que o assunto é bastante pautado na mídia. “O aluno poderia comentar sobre a falta de oportunidade de trabalho e os impeditivos presentes para uma pessoa com transtornos mentais conseguir alcançar seus objetivos de vida, até mesmo a labuta”.
A palavra “estigma”, para o professor, está diretamente associado a uma barreira, ainda que em diferentes níveis. “Se o aluno quisesse, seria positivo falar sobre a forma caricatural como o cinema e a mídia trabalham. A cultura que discrimina essas pessoas seria bastante acentuada como argumento”.
Como repertório para argumentação na dissertação, os professores mencionam o livro O Alienista, de Machado de Assis, o filme Coringa e a proximidade dos alunos com o tema, como o reconhecimento do uso pejorativo da palavra “retardado”. Para propostas de intervenção, os estudantes poderiam sugerir a criação de políticas públicas, como ampliação do atendimento feito pelo SUS, e a inclusão de pessoas com doenças mentais na sociedade, por meio de debate nas escolas, por exemplo.
Linguagens
A prova de Linguagens foi considerada tradicional e abrangente, com nível de dificuldade esperado e questões que abordam funções de linguagem, literatura e gêneros textuais, por exemplo. “Ainda assim, não quer dizer que é uma prova fácil. Ela exige que o aluno tenha uma habilidade ampla de leitura e compreensão de texto. Exige bastante atenção”, diz o professor de Português do Colégio Objetivo, Serginho Henrique, “Cada vez mais para a prova do Enem é fundamental que o aluno tenha uma leitura abrangente, a prova é bastante pluralista”.
Além das questões sobre igualdade de gênero, foram destacadas perguntas em que o texto-base foram letras de músicas. Na edição passada, nomes conhecidos da Música Popular Brasileira ficaram de fora. Nesta, Caetano Veloso aparece com a canção “Alegria, alegria”. Também houve questões sobre o Hino da Bandeira e a música “Bum bum tam tam”, de MC Fioti, cantor de funk que recentemente gravou um clipe com o Instituto Butantã.
Os professores chamam a atenção para a prova de Inglês, considerada mais difícil do que em anos anteriores. “Cobrou uma interpretação de texto maior”, diz o professor Fernando da Espiritu Santo, do Poliedro, “O que se destaca fortemente é que duas questões eram de autores nigerianos, fazendo uma ponte com a preocupação de ter conteúdos de matrizes africanas na Educação Básica brasileira”.
Em Espanhol, a prova seguiu o modelo tradicional. O destaque é que todas as cinco questões exigiam interpretação de texto, sem contar com imagens ou charge, por exemplo.
Ciências Humanas
A prova da área de Humanas foi considerada equilibrada, intercalando questões fáceis, médias e difíceis. Para o professor de Geografia do Objetivo, Eduardo Brito, o Enem não fugiu de tratar temas importantes para o País. “Tratou de problemas como estrutura fundiária, infraestrutura de transporte e logísticas e problemas ambientais. Assim como grilagem de terras, poluição e produção agrícola.” A tragédia de Mariana, em Minas Gerais, e a menção do Rio Tietê como um rio ‘morto’, por causa da poluição, também apareceram.
A prova de Geografia foi elogiada pelos professores. Mais do que interpretar os textos, os estudantes precisavam ter conhecimento do vocabulário da disciplina. Para o professor de Geografia do Bernoulli, Edvaldo Araújo Lopes Júnior, o Juninho, as questões vieram mais equilibradas do que em 2019, mas também com um grau de dificuldade maior.
“Havia questões de geopolítica, transporte, comércio e agropecuária – que foi, inclusive, um tema bastante explorado, com questões que envolviam também sustentabilidade.” Para o professor, o nível da prova foi de médio a difícil, exigindo que o aluno dominasse vários conceitos de Geografia para responder adequadamente.
Professores de Filosofia e Sociologia consideraram a prova bem elaborada. No ano passado, excepcionalmente, as duas disciplinas somaram 20 questões. Neste ano, como comumente acontece, foram 15 perguntas na área. O professor Vinícius Figueiredo Costa, do Colégio Bernoulli, destaca a ausência definitiva de Filosofia Medieval, temática cobrada nos dois últimos anos.
“A diferença mais marcante foi a presença de autores que não são os clássicos filosóficos, o que exigiu do aluno uma comparação entre os textos da prova e seu conhecimento prévio. Não foi uma prova difícil em termos de conteúdo, mas obrigou o aluno a fazer essa relação.”
Nas seis questões de Filosofia, a ideia central era de que o candidato conseguisse identificar o pensamento de cada Escola Clássica. “O aluno tem de ter uma certa compreensão do que é existencialismo, fenomenologia, empirismo e idealismo. Apenas seis questões, mas pegaram um arco temporal bem abrangente”, diz o professor José Maurício Mazzucco, do Colégio Objetivo. “Uma prova de excelente nível, muito bem elaborada.” (Terra)