Despreparo de profissionais e falta de políticas impedem acesso de população trans aos serviços de saúde

Cerca de 50% dos serviços de atendimento à população trans foi suspenso ou paralisado durante a pandemia. (Foto: Getty Images)

Desde dezembro de 2011 está em vigor a Política Nacional de Saúde Integral de LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), instituída pela Portaria nº 2.836, que em tese garante à população o atendimento de saúde integral proposto pelo Sistema Único de Saúde. Mas, na prática, a realidade é outra. 

A jovem Riitchelly de Lima, de 25 anos, viveu na pele as dificuldades em acessar os serviços de saúde e demorou mais de 10 anos para iniciar sua transição. “Me entendo trans desde os 13 anos mesmo sem saber direito o que isso significava e aos 15 comecei a ir em busca da minha identidade”, explica ela que morou na cidade de Bariri, interior de São Paulo até o ano de 2019.   

O processo de transição que começou esteticamente com alisamento de cabelo e uso de roupas ditas femininas em determinado momento se tornou uma questão de saúde. “Cheguei a passar com um médico na minha cidade, mas ele disse que não tinha muito que fazer porque não tinha um profissional de endocrinologia. E que eu teria de realizar as consultas em uma cidade maior e solicitar um transporte público que demoraria entre 15 e 30 dias”.

Além do traslado não ser uma garantia, a recusa dos pais em aceitar a identidade de gênero da filha era também uma barreira. “Meus pais não me aceitavam e aos 25 anos, quando deixei bem claro que não ia me esconder e seria eu mesma, eles acabaram me expulsando”, conta Riitchelly. 

A não aceitação familiar também faz parte da trajetória de Diana Martins dos Santos, 24 anos que foi excluída pela família religiosa. “A maior parte da minha família é evangélica, são fanáticos e dizem viver de acordo com a bíblia. Alguns irmãos sabem da minha transição, mas não tenho contato nem visito, até prefiro assim. Se eu não tivesse saído de casa nunca teria conseguido ser quem eu sou”, aponta a jovem. 

Tanto Riitchelly quanto Diana acabaram se mudando para o centro da cidade de São Paulo em busca de acesso aos acompanhamentos hormonais e conseguiram em UBSs (Unidades Básicas de Saúde), nos poucos espaços do país que efetivamente ofertam o serviço. 

RESTRIÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE

Como aponta Bruna Benevides, secretaria de articulação política da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), hoje existem apenas cinco hospitais do país que realizam procedimentos de redesignação de gênero.

“Existem somente 14 ambulatórios trans, não chega a ser um por estado”, explica, se referindo às unidades de saúde composta por profissionais preparados para atender as demandas destes corpos que fogem do padrão social. 

“Hoje os cuidados com saúde de pessoas trans se limita à combate à HIV e processos de transição de modo que parece que pessoas trans ou vive com o vírus ou quer mudanças nos caracteres sexuais secundários”, diz Bruna, referindo-se às questões genitais por exemplo, e completa: “não se olha para saúde mental, saúde reprodutiva e outros pontos essenciais da vida de qualquer pessoa”. 

A ginecologista obstetra Ana Thais Vargas, que se dedica ao atendimento de população trans há cerca de quatro anos aponta ainda o despreparo dos profissionais da área para o atendimento da população. “Não existe um reconhecimento da transexualidade, não se respeita nome social e identidade de gênero das pessoas e a grande maioria ignora solenemente o tratamento de pessoas trans”. 

Vale lembrar que a identificação pelo nome social no cartão SUS é um direito garantido desde 2009 pela carta de Direitos dos Usuários do SUS (Portaria 1.820 de 13 de agosto de 2009). 

Segunda a médica, muitos profissionais recusam a atender pessoas trans por terem medo de não saber como ou não se sentirem capazes, e aponta que a falta de formação é um outro fator.

“Existem particularidades no atendimento, por exemplo de homens trans, como o uso recorrente de binder e packers, os efeitos dos hormônios, como se dá a fertilidade dessas pessoas e chegam até a ignorar a indicação métodos anticoncepcionais para eles”, relata ela.

A ginecologista é autora do capítulo voltado para saúde ginecológica de pessoas LGBT no livro Rezende Obstetrícia, publicação fundamental da área veiculado pela primeira vez em 1976. Até então, o exemplar nunca tinha tratado de corpos LGBT.  

Bruna completa “precisamos de uma formação de profissionais de saúde que pensam em corpos que não são cisgêneros, brancos e heterossexuais. A formação hoje é ciscentrada e não dá conta dos nossos corpos e se reverbera em profissionais de saúde despreparados” aponta a ativista.

A chamada cisnormatividade ocorre quando todas as normas se baseiam exclusivamente nas vivências de pessoas cisgênero. Ou seja, pessoas que ao longo da vida se reconhecem nos genêros que lhe foram atribuídos ao nascer exclusivamente por suas genitais – em linhas gerais, pessoas cis são as que não são trans. 

SAÚDE EM MEIO À PANDEMIA 

Uma pesquisa interna da rede de afiliadas da ANTRA estimou que 50% dos serviços de atendimento de população trans foram paralisados durante a pandemia do Covid-19.

“Ouvi relatos muito desesperados de mulheres trans que me diziam que preferiam morrer de Coronavírus do que viver em um corpo que não às representavam”, relata Bruna. Segundo a ativista o tempo de espera para redesignação de gênero no SUS varia entre 10 e 15 anos.

No dia 1º de abril, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos divulgou uma cartilha de combate ao coronavírus dedicada especificamente para população LGBT onde chamou erroneamente as operações de redesignação de gênero de “cirurgias do processo transexualizador”, ao anunciar que as chamadas cirurgias eletivas seriam adiadas. 

A urgência faz inclusive com que muitas pessoas trans recorram ao uso de hormônios por conta própria como Diana. “Comecei a transição em outubro e logo comecei com os hormônios porque não queria ficar em uma fila de espera, mas agora já fui na UBS, fiz as consultas e os exames e estou só aguardando para ir buscar os hormônios”.

Ela revela, no entanto, que a maioria das pessoas decide fazer por conta própria e dispensa um acompanhamento profissional. “Moro com uma amiga que transicionou há dois anos e só agora tá começando a ir atrás, a gente tem medo da demora, de ser atendida de mal jeito, tem toda uma questão”, relata. 

Riitchelly conta que “quando cheguei em São Paulo fiquei muito ansiosa porque via minhas amigas e conhecidas já tendo mudanças no corpo, tive muita vontade de fazer por conta, mas graças à ajuda de uma psicóloga consegui esperar e fazer tudo certinho”, diz consciente ainda que é graças ao serviço público de saúde do país que é possível seguir com a transição. 

“Não teria como fazer isso do meu bolso, eu considero que o SUS é essencial para eu ser quem eu sou, só os hormônios já tem um custo altíssimo e sem médico, sem exames é um risco muito grande”, finaliza a jovem. (noticias.yahoo)

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