“Dia da Mulher para quem?”, questiona a produtora cultural Sylvia Borba, de 29 anos, moradora de Praia Grande, no litoral de São Paulo. Ela, que se identifica como travesti, relembra um episódio que viveu nesta data no ano passado, quando decidiu tirar uma folga dos trabalhos para cuidar de si, mas acabou não sendo incluída nas celebrações do dia.
“Foi um dia horroroso. Fui ao salão [de beleza] e estavam dando flores para as mulheres, mas não deram para mim. Fui a um restaurante e estavam dando sobremesa de graça [às mulheres]. Eu paguei pela minha sobremesa. Não é sobre a rosa, pois eu tenho as minhas próprias questões sobre isso, mas eu queria ganhar esse carinho”, desabafa.
Sylvia afirma que, apesar de também ser seu dia, ela não se sente representada. “Eu gostaria de responder que sim, porque é uma data importante”, justifica. “Mas, de qualquer forma, eu me represento. Eu sei que sou incrível”.
Apesar de não se incomodar em ser chamada de mulher trans, Sylvia conta que se identifica como uma travesti, e explica o motivo. “Reivindiquei o termo ‘travesti’ para tirá-lo da marginalização”, explica. “A partir do momento em que eu falo que sou travesti, automaticamente as pessoas deduzem que eu me prostituo, que eu roubo, que tenho gangues. Estou falando de coisas que já falaram para mim”.
A produtora cultural conta que perdeu diversos trabalhos quando começou a se identificar como mulher. “A partir do momento em que eu passei a afirmar que sou uma pessoa transexual, comecei a ser tirada de espaços que eu já dominava”, conta.
Hoje, Sylvia é co-fundadora da Casa Chama, uma associação cultural de cuidados LGBTQ+, responsável pela organização de um dos maiores eventos inclusivos à comunidade trans da América Latina, o Trans/Versalidades.
‘Fui transformando minha dor’
A atriz Nayara de Souza Peixoto, de 28 anos, diz que, após muitos conflitos consigo mesma, conseguiu superá-los e celebrar a data. “Por muito tempo, eu mesma negava meu próprio eu. Hoje em dia, eu me olho no espelho e reconheço que esse dia também pode ser meu. Eu batalhei muito para ser a mulher que eu sou, fui transformando minha dor”, diz.
Nayara, porém, diz que nunca recebeu parabéns pela data. Mulher transexual, a atriz revela que passa pela invalidação de identidade dentro da própria casa. “Então, todo dia é uma luta. Todos os dias, eu acordo e sei que sou uma mulher trans, mas, todo dia, em algum momento, eu tenho que me recolocar como mulher”, conta.
A atriz, que abandonou a escola aos 16 anos por não ter o direito ao nome social respeitado, retomou os estudos recentemente e se formou no fim de 2019. Assim que a pandemia acabar, ela pretende estudar artes cênicas, para ter acesso a mais oportunidades na área, já que encontra dificuldades para encontrar trabalhos que não sejam voltados às questões LGBTQ+.
“Eles querem nos rotular, sempre há um estigma. Nunca falam de nossas dores reais, nunca vi uma novela onde [a pessoa trans] era uma criança normal, um personagem normal, um estudante da escola”, exemplifica.
Nayara aponta, ainda, que as situações encontradas pelas pessoas transexuais são triplamente mais difíceis do que as enfrentadas por pessoas que se identificam com o gênero biológico. “Primeiro, a gente tem que provar que é uma cidadã. Depois, a gente tem que provar que não é a figura que a sociedade faz da gente. Por último, a gente tem que provar que é o melhor naquilo que faz, para ter alguma relevância”.
‘Me aceitei como mulher e me imponho’
Patrycia Nunes, de São Vicente, já foi usuária de drogas e viveu nas ruas por um longo período. Hoje com 40 anos, ela, que é uma mulher trans, é exceção, já que a expectativa de vida de pessoas transexuais e travestis no Brasil é de apenas 35 anos. Cabeleireira e artista, Patrycia conta que “precisou passar por isso para aprender a dar valor à própria vida”.
E superou. Na fila para adoção de um filho e casada, Patrycia diz que nenhum Dia da Mulher passa em branco, pois seu esposo faz questão de presenteá-la e parabenizá-la todos os anos. “Eu sou a esposa dele, a mulher dele”. Para ela, isso basta, e mesmo na região onde vive e é conhecida, diz que não sofre mais esse tipo de discriminação. “Me aceitei como mulher e me imponho como mulher. É isso que eu sou”.
As dificuldades que Patrycia enfrentou durante os quatro anos em que viveu na “cracolândia” com um antigo companheiro lhe trouxeram o aprendizado necessário para se aceitar por completo, segundo ela mesma diz.
“Minha mãe sempre diz que, às vezes, a gente tem que passar por aquilo para aprender. Eu tive que passar por aquilo para dar valor à minha vida, porque eu achava que me amava, mas não. Hoje, me sinto pronta para encarar a vida como ela é”, conclui. (G1)