“Ele veio para provar que é possível viver e ser amado em uma família diferente”, diz trisal de SP, sobre recém-nascido

Marcel, Priscila e Regiane, mais abaixo (Foto: Arquivo pessoal)

O pequeno Pierre ainda é muito pequeno para entender o que sua chegada ao mundo representa. O menino nasceu no dia 16 de abril, em Bragança Paulista, no interior de São Paulo. Mas o que chama atenção não é nenhuma condição de saúde ou acontecimento inesperado. Pierre apenas tem uma estrutura familiar peculiar: um pai e duas mães — uma que o gerou e o trouxe à vida e outra “socioafetiva”. 

Marcel Mira, Priscila Machado e Regiane Gabarra estão juntos há mais de três anos, moram na mesma casa, dividem a cama, mas, em vez de casal, formam um “trisal”. Antes de conhecer Regiane, Pri e Má, como carinhosamente se chamam, estavam juntos há mais de 15 anos e já tinham duas filhas. Priscila e Regiane trabalhavam juntas, mas, com o passar do tempo, a amizade foi se fortalecendo. “Em um determinado momento, eu percebi que estava apaixonada por ela e isso estava me deixando doida”, lembra Priscila.

Até que o casal propôs um ménage — expressão francesa que se refere a uma relação envolvendo três pessoas. Mas o que começou como uma aventura acabou tornando-se amor: “Não conseguíamos mais nos deixar”, conta Pri. Mas não foi fácil: eles sofreram resistência por parte de familiares, o que os levou, inclusive, a mudar de cidade. E a ideia de aumentar a família partiu de Regiane, que sempre teve o desejo de ser mãe. “Ele veio para mostrar e provar que é possível viver e ser amado em uma família diferente”, garantiu Priscila.

Marcel, Priscila e Regiane (Foto: Arquivo pessoal)
Marcel, Priscila e Regiane, mais abaixo (Foto: Arquivo pessoal)

Em entrevista à Crescer, ela relembrou o início da relação, como deu a notícia as filhas de 14 e 9 anos, falou sobre preconceito, os combinados para que o trisal dê certo e como está sendo desde a chegada de Pierre.

Confira!

CRESCER: Você e Marcel já conheciam um trisal antes de formar um? 
Priscila Machado: Não, eu nem sabia que existia trisal. Já tinha ouvido falar em ménage, mas sobre trisal nunca.

C: Quando conheceu Regiane e como começou a relação a três?
PM: Eu conheci a Regiane no trabalho. Eu era coordenadora e ela, assistente social. Nós trabalhávamos muito juntas, nos tornamos muito amigas e essa relação de amizade se fortificou, meio que viramos uma família, antes de qualquer tipo de relação. Uma sempre estava lá para ajudar a outra. E em um determinado momento, eu percebi que estava apaixonada por ela e isso estava me deixando doida. Ela era, aparentemente, heterossexual, estava solteira, não dava nenhum tipo de abertura em relação a isso e eu era casada… Como eu ia dizer que estava gostando dela e queria algo com ela? Na época, para tirar isso da minha cabeça, eu propus para o Ma um ménage. Porém, não aconteceu na data que eu propus. Um mês depois, contei para ela que tinha proposto isso e ela comentou que eu estava ficando louca e que dependendo da mulher que eu convidasse, poderia prejudicar meu casamento. Então, pensei bem e deixei de lado. Um tempo depois, fomos em uma formatura juntos e depois para uma balada. Nessa balada, Re e eu bebemos um pouco demais e nos beijamos. Esse beijo foi contado para o Marcel. Nessa noite, a Re passou mal e a levamos para nossa casa. Lá, propomos a ela um ménage. E o que era só uma brincadeira, uma aventura, foi se repetindo, repetindo até criarmos laços de amor, carinho e não conseguíamos mais nos deixar.

C: Qual foi a reação das pessoas quando vocês assumiram o relacionamento?
PM: Primeiramente, a Regiane contou para alguns amigos, e eles receberam muito bem a informação, viram que ela estava feliz. Mas minha família não recebeu bem, não aceitou e, diante de algumas ameaças que acabaram fazendo, a Re se sentiu desconfortável de morar com a gente. Então, decidimos nos mudar para outra cidade. Foi então que começamos a morar juntos. Fomos para uma casa maior, onde coubesse todo mundo: os seis. Meses depois, ela teve a ideia de criar um perfil no Instagram (@trisalamoraocubo). Eu acho que foi ali que propriamente abrimos sobre a relação, pois, até então, uma ou outra pessoa sabia. Ainda assim, demorou um tempo para esse perfil se tornar público. Era mais um “disse que me disse”, mas a gente não falava para todo mundo. 

Trisal vive junto (Foto: Reprodução/Instagram)
Trisal vive junto (Foto: Reprodução/Instagram)

C: Como foi com as suas filhas?
PM: Foi supertranquilo. Contamos primeiro para o irmão da Re, que ela criou praticamente como um filho, e também foi morar conosco. Foi o primeiro a saber. Ele tinha 15 anos na época e lidou bem com a situação. Claro, estranhou em um primeiro momento, mas imediatamente já disse que o importante era sermos felizes. Depois, contamos para nossa filha mais velha, que hoje tem 14 anos. Ela demorou um tempo para assimilar, pois não conseguia entender direito a dinâmica. Na cabeça dela, o pai estava me obrigando a viver isso. Quando ela conseguiu entender que eu estava feliz, que a Regiane estava feliz, aí acabou. Era a mesma tia que ela amava e lidou muito bem com isso. Quando fomos conversar com a caçula sobre isso, ela já sabia. Falou que estava tudo bem, então, foi supernatural. Hoje, ela tem 9 anos. Imagina, então, com o Pierre, que nasceu com a família já estruturada dessa forma? A Bela, que é a de 9 anos, já disse na escola que vai precisar de dois presentes para o Dia das Mães, e a escola se prontificou a ajudar. Como é gostoso ver nos olhinhos dela a alegria de ter duas mães! Esses dias, perguntaram se ela não acha diferente ter duas mães. E ela respondeu: ‘Eu acho que eu sou especial por ter duas mães’. Isso é uma dádiva!

C: Já sofreram algum tipo de preconceito? 
PM: Preconceito direto, como em um restaurante ou supermercado, nunca. Nunca ninguém apontou o dedo para a gente. Mas na rede social, sim. Como nós nos tornamos pessoas públicas, as pessoas se sentem na liberdade de achar o que quiserem. Cada um tem sua opinião e a coloca da maneira como quiser. Mas o mais próximo de preconceito que sentimos mesmo foi da minha família. Além de não aceitarem, eles não respeitaram. Uma irmã minha ameaçou a Regiane e, certa vez, minha mãe quis bater nela e teve gritaria… 

C: Vocês têm regras para que o relacionamento dê certo?
PM: Nós temos combinados. As regras que seguimos é a padrão de todo relacionamento: honestidade, caráter, amor e respeito. Mas como trisal, temos um único combinado. Para que seja harmonioso e nós duas não fiquemos com ciúmes, quando há relação sexual com o Marcel, nós sempre estamos juntas. Então, nunca é ele sozinho com uma das duas. Já eu e ela temos a liberdade de estarmos juntas intimamente, pois, para ele, não tem problema nenhum. 

Marcel, Priscila e Regiane (Foto: Reprodução/Instagram)
Marcel, Priscila e Regiane (Foto: Reprodução/Instagram)

C: Como foi a decisão de ter Pierre?
PM: A Regiane sempre quis ser mãe, e sempre abordou esse tema com a gente. Mas como, no início, era tudo uma brincadeira, não demos muito crédito. Quando começou a ficar sério e ela tornava a falar sobre crianças, para mim, era muito difícil. Eu não queria mais ter filhos. Já Marcel, sim. Mas eu não e, inclusive, ele havia feito vasectomia. Então, num dia, ela chegou para a gente e disse: ‘E agora?’. Eu tive que colocar na balança, pensar bem, sentar e conversar. Então, decidimos tentar. Por causa da vasectomia, tivemos que optar pela fertilização in vitro. Usamos o sêmen do Marcel e o óvulo da Re. O meu propósito era de que, se desse certo na primeira tentativa, era porque Deus realmente queria mandar um bebê para a gente. Se não desse certo, eu teria que sair desse relacionamento, pois não era para eu ser mãe novamente e não poderia empatar a vida da Re. Mas era um propósito de Deus na nossa vida e a Re gestou logo na primeira tentativa. Foi uma gestação muito tranquila e abençoada. Ela não teve nenhuma intercorrência, Pierre veio supersaudável ao mundo e estamos muito felizes com essa nova fase da nossa vida.
C: De que forma a chegada dele mudou a vida de vocês?
PM: É muito recente ainda, mas eu posso dizer que ele veio para nos unir ainda mais. Estamos ainda mais fortalecidos, nos enxergamos nele. Ele é um bem que veio dessa relação. O Pierre é fruto desse amor, dessa relação, então ele veio para mostrar e provar que é possível viver e ser amado em uma família diferente.

Marcel e Priscila acompanharam o parto (Foto: Reprodução/Instagram)
Marcel e Priscila acompanharam o parto (Foto: Reprodução/Instagram)

C: Como tem sido a rotina desde o nascimento?
PM: “Bagunçou” a nossa rotina. Na verdade, ainda não conseguimos ajustar uma nova rotina. Estamos numa fase de desconstrução da rotina antiga e construção de uma nova, vivendo no tempinho dele. Ainda nos adaptando. Coisas que antes eram importantes, como casa arrumada, horários para acordar e dormir… isso já mudou. A arrumação da casa já não tem tanta importância e a prioridade é o bem-estar dele. Quando ele dorme é o nosso momento de descansar. Tudo é muito novo, uma novidade muito gostosa; estamos sabendo levar de uma maneira muito leve, sem pressão e isso está sendo muito bom. 

C: Conseguiram licença no trabalho para acompanhar os primeiros dias de vida?
PM: O Marcel conseguiu a licença-paternidade conforme e lei determina; já a Regiane e eu somos autônomas, nosso trabalho é muito flexível, então, já tínhamos nos programado para  quando ele nascesse, ficássemos pelo menos um mês sem trabalhar. Assim que retornarmos, vamos nos organizar para que nos dias em que o Marcel estiver de folga, fique com Pierre. Esse é o plano. Agora, nos primeiros dias, estamos apenas curtindo ele.

C: Vocês compartilham um pouco da rotina nas redes sociais. Por que falar sobre o assunto?
PM: O perfil (@trisalamoraocubo) foi criado para desmistificar, diferenciar uma “família poliafetiva” de uma “família de bagunça”. Quando falamos em trisal para as pessoas, elas automaticamente pensam em bagunça, baderna, promiscuidade, pessoas levianas. A ideia é mudar essa percepção. Somos uma família igual a todas as outras. Temos nossos perrengues, nossas alegrias, dificuldades, temos uma rotina e muito amor. E queremos fazer com que isso se espalhe, para que as pessoas possam olhar com menos preconceito para esse tipo de relação, que é o trisal, dentro do poliamor.

C: Pierre tem duas mães! Como planejam a criação e educação dele em um mundo ainda tão preconceituoso?
PM: Se existissem mais “Pierres”, isto é, crianças provenientes de relações de amor, de liberdade, de não preconceito, seria uma geração muito mais leve. Acreditamos que isso vai acontecer, pois as próximas gerações serão mais maduras. Queremos criar o Pierre para respeitar as pessoas, as escolhas das pessoas, a opinião das pessoas. Elas têm que ter liberdade para serem felizes, cada uma da sua maneira. Todo mundo fala que Pierre é uma criança privilegiada, pois ele terá o amor de duas mães e um pai. Privilegiados também somos nós que vamos poder dividir esse amor com mais uma mãe. Muito bom saber que contamos com mais duas pessoas para ajudar na criação de um filho. São mais dois pares de mãos estendidos para você nas dificuldades e alegrias, e isso é gratificante. Começamos a viver isso desde o momento do parto, quanto estávamos os três na sala de parto, felizes, um dando apoio para o outro… e como é gostoso! Amor é uma coisa tão boa! Por que, então, amar demais é tão ruim? Quanto mais amor, melhor! Ruim seria viver numa relação sem amor. Aqui, temos muito amor. Como uma criança com duas mães que só dão amor para ele poderá ser uma criança triste?

C: Pierre será registrado com duas mães e um pai?
PM: Agora, ele provavelmente será registrado com os nomes da mãe biológica e do pai biológico. Depois de um tempo, pretendemos pedir o reconhecimento da maternidade socioafetiva no jurídico. 

Legislação brasileira

A lei brasileira não reconhece o relacionamento a três. No entanto, permite o registro de crianças com mais de um pai ou mais de uma mãe por meio da responsabilidade socioafetiva. Com isso, a pessoa passa a ter todos os deveres dos pais biológicos, incluindo dever de pensão e partilha de herança. A inclusão no registro, no entanto, depende da avaliação do juiz e dos psicólogos. Eles precisam reconhecer que há laços afetivos entre a mãe social e a criança. 

por Sabrina Ongaratto / Revista Crescer

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