“Porque talvez ainda tenha atração pelo mesmo gênero significa que a pessoa tenha que viver isso? Não”, diz Andréa Vargas, presidente da Exodus Brasil, em uma entrevista para um canal gospel no YouTube. Missionária evangélica que palestra sobre sexualidade a partir de uma perspectiva bíblica, ela está à frente também da Avalanche, uma agência de missões urbanas. Conversa com um público massivamente jovem em eventos com formatos modernos, que às vezes lembram TED Talks. Sua mensagem principal é: a homossexualidade é um pecado que pode, e deve, ser abandonado.
A Exodus, representada por Andréa Vargas no Brasil, é uma das operações de uma organização evangélica internacional chamada Exodus Global Alliance. Sua rede se estende por vários continentes articulando igrejas, missionários, políticos, psicólogos e defensores de terapias de reorientação sexual, a chamada “cura gay”. Como o próprio nome sugere (Exodus, em português êxodo, significa saída), a entidade prega ser possível, para pessoas LGBTQI+, abandonar desejos e mudar de orientação sexual “por meio do poder transformador de Jesus Cristo”.
Em 2013, a Exodus Internacional comunicou seu fechamento nos Estados Unidos. Na época em um comunicado oficial postado no site da organização Alan Chambers, ex-presidente do capítulo norte-americano, pediu perdão à comunidade gay, “por anos de sofrimento indevido e julgamento nas mãos da organização e da igreja como um todo”. E admitiu: “nós machucamos pessoas”.
Não foi o fim. Com uma sede no Canadá, a Exodus Global Alliance segue operando em escritórios regionais, inclusive nos Estados Unidos, onde mantém um endereço fixo em Michigan.
Na América Latina, a Exodus está bem ativa. Tem dois escritórios sede – um em Cuernavaca, Morelos, no México, e outro em Londrina, Paraná, no Brasil. Nesses países, assim como em outros da região, o ministério internacional interdenominacional funciona como um guarda-chuva para dezenas de entidades. Seus afiliados incluem igrejas evangélicas, ministérios defensores das terapias de reversão sexual e até psicólogos. Desde 2019, depois de presenciar um congresso da organização na cidade de Campinas, interior de São Paulo, a Pública tem investigado a atuação da Exodus no Brasil. E este especial traz, em parceria com OjoPúblico (Peru), El Surtidor (Paraguai), a jornalista equatoriana Desirée Yépez e Mexicanos contra la Corrupción y la Impunidad (México), em primeira mão, uma investigação sobre sua atuação e a de grupos antidireitos LGBTQI+ nos cinco países. No Paraguai e no Peru, não há dispositivos legais específicos que proíbam práticas de reorientação sexual, como no Brasil, onde uma resolução do Conselho Federal de Psicologia veta essas experiências desde 1999 ou no Equador, onde desde 2014 o Código Penal pune quem tortura alguém com essa finalidade. No México, igrejas evangélicas tentam barrar uma lei que pretende proibir, em território nacional, iniciativas que visam mudar a orientação sexual e identificação de gênero.
Dos EUA para o mundo
A história da Exodus começou nos Estados Unidos com Frank Worthen, considerado o pai dos ministérios de “ex-gays”. O movimento de libertação LGBTQI+ havia eclodido no país, em manifestações como as de Stonewall. Nessa época, Worthen, que se dizia liberto da homossexualidade por Jesus e foi casado com uma mulher, fundou um ministério chamado Love in Action. A Exodus foi formada em 1976, durante um congresso de “ex-gays” que promoveu.
Depois o grupo passou a exportar missionários recrutados durante os eventos da Exodus. Em vários países, esses missionários replicam a estratégia norte-americana, alimentando uma rede de entidades afiliadas com treinamentos, congressos, materiais de estudo e livros. Pessoas em conflito com a própria sexualidade, sobretudo jovens, são o foco de congressos e programações da Exodus, onde a homossexualidade, geralmente chamada de SSA (same-sex attraction), é tratada como um pecado e um desvio de comportamento.
Segundo a Exodus, a orientação sexual de pessoas LGBTQI+ não é algo natural, mas consequência de traumas de infância, abusos e/ou problemas com os pais. Pode ser ainda associada a uma crise de identidade e até inveja da pessoa do mesmo gênero. Essas abordagens estão amplamente documentadas em textos e em vídeos dos membros da organização na internet.
O discurso da reorientação sexual deles caminha entre as sutilezas e os simbolismos religiosos. Os integrantes da Exodus e dos seus parceiros evitam termos já muito combatidos como “cura” para tratar de questões sexuais. Preferem falar de “sexualidade a partir de uma perspectiva cristã”, “discipulado” e/ou de reorientação, reparação e restauração sexual. Dizem, inclusive, que não existe cura gay, ou seja, não dá para se libertar dos desejos. Mas é possível fugir da condenação – que é o inferno e a morte espiritual – evitando a prática, quer dizer, sendo celibatário, como conta o repórter da Pública que participou de um congresso da instituição no Brasil em 2019.
São conceitos como esses que a organização reverbera na América Latina. As mesmas crenças têm respaldado discursos LGBTfóbicos, como o do pastor Guayaquil Nelson Zavala, da Igreja Monte de Sião, no Equador. Ele garante ter convertido milhares de jovens à “sexualidade correta”. Também embasam práticas de tortura psicológica, a exemplo da história da ex-seminarista de uma escola do grupo musical Diante do Trono, da igreja brasileira Batista da Lagoinha, em Minas Gerais. Ela contou à repórter da Pública que, durante seminário, foi submetida a isolamento, terapia com psicólogos cristãos e exorcismos por ser lésbica.
Psicólogos cristãos
A Exodus chegou à América Latina pelas mãos da psicóloga cristã brasileira Esly Regina Carvalho. Em 1982, ela organizou no Brasil o congresso “Encontro Cristão sobre Homossexualidade” e em 1988 editou o livro Homossexualismo. Abordagens cristãs. O termo “homossexualismo” é considerado pejorativo porque relaciona a atração pelo mesmo sexo a uma patologia. A homossexualidade saiu da lista internacional de doenças da Organização das Nações Unidas (ONU) há 30 anos.
Em 1994, Esly formou a Exodus América Latina. Atualmente ela é vice-presidente da AIBAPT (Associação Ibero-Americana de Psicotrauma) e diretora da Traumatic Clinic no Brasil, onde trabalha com a EMDR. Por essa abordagem, lembranças dolorosas podem ser reprocessadas através de uma técnica de movimento ocular.
Quatro anos depois da fundação, a Exodus América Latina se estabeleceu em Quito, no Equador. No país, só a partir de 2014 terapias que visam modificar a identidade de gênero e orientação sexual passaram a ser interpretadas como tortura, com pena de prisão.
Embora a sede latino-americana funcione atualmente no México, ministérios evangélicos afiliados à Exodus, como o Camino de Salida, continuam operando em território equatoriano, como mostra a reportagem de Desirée Yépez. A metodologia para converter pessoas LGBTQI+ usada por eles é a mesma da Exodus. Em congressos e cursos sobre sexualidade, os participantes ouvem palestras e pregações, fazem orações e são expostos a testemunhos de “ex-gays”.
Para se livrar da homossexualidade, também são orientados a cortar conexões com o “mundo gay” e ler livros cristãos – os sites da Exodus têm áreas dedicadas à venda de livros. É uma das fontes de renda do projeto sem fins lucrativos, que também angaria recursos com seus eventos pagos.
LGBTfobia segue viva na América Latina
A reportagem de Desirée conversou com um homem trans que foi coagido pelos pais a passar pelo processo de “cura gay” no Equador. “Garantiram a ‘Gonzalo’ (25 anos) que ele poderia deixar de ser um homem trans. Mesmo que ele não quisesse, seus pais estavam convencidos de que sua identidade de gênero poderia ‘ser curada’. Relacionavam-na com doença mental, bruxaria e satanismo”, conta a matéria. Depois de passar por alguns procedimentos e se negar a continuar, Gonzalo, que ainda mora com os pais, é hostilizado dentro da própria casa. Precisa suportar que os pais não o chamem por seu nome e que agridam sua identidade: “A transfobia segue viva”, lamenta.
No Peru, o Centro de Restauração Sexual Homossexual (CREHO), um dos parceiros da Exodus, usa uma abordagem de “assessoramento espiritual” para reverter a homossexualidade. Além de instituições religiosas, as terapias de reversão sexual no país, onde não há leis que punam especificamente essas iniciativas, também são operadas por psicólogos. Uma jovem lésbica contou à repórter do OjoPúblico que sua orientação sexual foi diagnosticada como transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) por um psicólogo. Ele receitou medicamentos como Haloperidol – um antipsicótico de alta potência – para livrá-la da atração por outras mulheres. Mas o único efeito foi o sono excessivo.
“CREHO e o grupo ExLGBT Peru oferecem um aconselhamento espiritual que inclui palestras que estimulam a culpa e promovem terapias de reconversão sexual consideradas como atos de tortura pela Organização das Nações Unidas (ONU)”, traz a matéria do OjoPúblico. “Nos últimos anos, o grupo contou com o apoio de políticos, como o ex-congressista e pastor evangélico Julio Rosas – na época, ele era congressista pelo partido Fuerza Popular, do ex-ditador Fujimori e vinculado ao movimento “Con mis hijos no te metas” (Não se meta com meus filhos). Em junho de 2013, o movimento convidou representantes do CREHO ao Congresso para realizar a conferência “Identidade e Reorientação Sexual”.
Ainda segundo a reportagem, em novembro de 2019, o coletivo Mais Igualdade Peru apresentou o estudo “Saúde mental e população LGTB”, que identifica e denuncia esse tipo de terapia de reconversão sexual no Peru. A partir da pergunta “alguma vez você já frequentou um serviço de saúde mental que tenha tentado mudar sua orientação sexual ou identidade de gênero?”, o estudo identificou que quase 40% das pessoas responderam positivamente.
Desse grupo, 5% afirmaram ter sido internados e cerca de 62% das vítimas que responderam ter sido submetidas a esse método disseram ter passado por esses episódios sendo menores de idade. Outro dado revela que 90% das pessoas submetidas a essas terapias tinham menos de 25 anos.
No Paraguai também não há legislação específica para coibir experiências de reorientação sexual, como explica a reportagem do El Surtidor. César Yamandú, um representante da Exodus, organiza grupos de oração com jovens LGBTQI+ em Assunção e os fazia dizer que sua sexualidade era uma mentira.
Alguns grupos religiosos, como o Grupo do Amor, Aceitação e Perdão (GAAP) o ensinaram a “adquirir modos masculinos” por meio do futebol e ministérios como “Restauração”, deram palestras muito semelhantes a que o repórter da Pública no Brasil participou, em que a homossexualidade foi expressamente chamada de pecado.
No país há uma história de tortura com eletrochoque supostamente para curar a homossexualidade em Filadelfia, no Chaco. Mas as chamadas terapias nem sempre se manifestam dessa forma. A conversão é também um discurso médico patologizante que, em aliança com grupos religiosos, consegue penetrar fortemente nas famílias e na cultura, aponta a reportagem. El Surtidor explica também que em 2011 a Sociedade Paraguaia de Estudos da Sexualidade Humana divulgou nota na qual denunciava as terapias de reorientação sexual que vinham sendo desenvolvidas no país. Em 2017, a Sociedade Paraguaia de Psicologia publicou relatório lembrando que a Associação Americana de Psiquiatria eliminou a homossexualidade da lista de transtornos mentais em 1972, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) a retirou da lista de doenças mentais em 1990 e que a transexualidade deixou de ser considerada um transtorno mental. Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a terapia de conversão para pessoas LGBTQI+ é uma forma de tortura.
Por lá, essas experiências não são proibidas e, com isso, muitos ministérios, pseudopsicólogos e “gurus” das terapias de reversão sexual têm passado pelo país. Em 2017, o autoproclamado profeta T.B Joshua, da Nigeria, conhecido como “libertador de espíritos homossexuais”, fez sua viagem ao Paraguai. Na ocasião, o deputado colorado Bernardo Villalba propôs dar-lhe a maior distinção concedida pela Câmara Legislativa. Bob Fife, do Canadá, que se autodenomina “ex-gay”, também foi ao país para dar seu testemunho de “redenção”, em setembro de 2019, no Centro de Teologia Evangélica Mennonita Asunción (CEMTA) e na Igreja Menonita Concórdia.
A reportagem do El Surtidor traz também a história de Luciano, um jovem que, quando revelou aos pais que era gay, foi expulso de casa e levado pelo pai a um retiro de uma semana em Guadalajara, no México, organizado pelo Courage Latino – a mesma organização católica citada na reportagem do Equador, que se dedica a proporcionar “cuidado espiritual às pessoas que experimentam a “Atração pelo Mesmo Sexo” (AMS). O relato de Luciano sobre o evento é semelhante ao do repórter da Pública, com a ideia de que a homossexualidade está relacionada a abusos na infância.
Em um centro de retiros do Courage no México, um ativista de direitos humanos contou à reportagem do Mexicanos contra la Corrupción y la Impunidad que presenciou terapias de conversão sexual brutais em 2015. Segundo o relato, crianças e adolescentes foram conduzidos a uma espécie de transe e ficaram inconscientes depois de terem sido obrigados a confessar experiências sexuais com outros homens, enquanto um padre borrifava água benta e os sacudia dizendo: “O que você tem é diabo!”.
Na América Latina, a Exodus é coordenada, pela sede mexicana, por Óscar Galindo. O endereço fica em Cuernavaca, estado de Morelos. Galindo associa a homossexualidade masculina à ausência do pai e se diz ex-gay. Eles operam com apoio de igrejas evangélicas como a Assembleia de Deus, que tem mais de 6 mil centros de pregação no país e 1 milhão de fiéis. A reportagem do Mexicanos contra la Corrupción mostra que, em instalações dessas igrejas, a Exodus promove rituais de restauração de homossexuais, incluindo expulsão de demônios. Também são realizados retiros espirituais para homossexuais, levados pelas próprias famílias para serem “curados”.
Ainda não existem dispositivos legais que coíbam experiências de reorientação sexual em todo o território mexicano, apenas em alguns estados. Atualmente, igrejas como a Assembleia de Deus fazem forte oposição a um projeto de lei que tramita no Senado para transformar essas práticas em crime. O Conselho das Assembleias de Deus chegou a enviar uma carta de protesto ao Congresso e ao presidente. O texto tacha o projeto de lei de “ideologia de gênero” e diz que a aprovação proíbe a “liberdade do exercício eclesiástico” e “penaliza qualquer pai ou mãe, ou ministro de culto”.
No começo, a organização recomendou que os membros mexicanos suavizassem o discurso para driblar as novas restrições legais que tentam criminalizar iniciativas de reorientação sexual. Termos como “curar” e “reverter” devem ser trocados por frases como “oferecer esperança e primeiros socorros a pessoas afetadas pela ruptura sexual”, mostra a reportagem do Mexicanos contra la Corrupción. No Brasil, o repórter que presenciou um evento da Exodus conta que, além de orientar gays, lésbicas e bissexuais a “deixarem comportamentos homoafetivos”, mulheres e homens transexuais devem descartar suas identidades para serem restaurados.
Adão e Eva
O psicólogo Charlisson Mendes procurava uma abordagem inovadora para a sexualidade quando participou de um congresso da Avalanche Missões, afiliada da Exodus, em Minas Gerais. “Eles se dizem modernos, porém têm uma visão arcaica baseada no argumento de que Deus criou Adão e Eva – homem e mulher – e, por isso, qualquer outra forma de relação é pecado”, conta. Lembra que os preletores do evento diziam que “relações gays e lésbicas eram desequilibradas e não duravam. E que essas pessoas estavam fadadas à solidão”.
Antes de se assumir como homem gay, ele buscou ajuda em várias igrejas evangélicas, entre elas a Caverna de Adulão, também em Minas Gerais, pastoreada por Geraldo Luiz da Silva, um dos principais palestrantes em congressos que abordam “conflitos sexuais” para jovens cristãos no Brasil. Ao lado dele, outros nomes recorrentes nesses eventos são Andréa Vargas, que, além da Exodus e da Avalanche Missões, tem vários livros publicados e uma escola de sexualidade, e David Riker, membro da Exodus e pastor da Terceira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, à frente do Ministério Ser – Sexualidade & Restauração.
O Ministério Ser mantém uma escola de sexualidade com cursos baseados no que chamam de cosmovisão bíblica. Os conteúdos são voltados para lideranças cristãs interessadas em aprender a lidar com conflitos atuais da sexualidade, abordando a homossexualidade como um desvio do plano perfeito de Deus, manifestado em Adão e Eva.
Outras organizações que afirmam ser possível curar a homossexualidade com tratamentos psicológicos e espirituais também estão em pleno funcionamento em outros países da América Latina. No México, por exemplo, a VenSer é uma associação de psicólogos cristãos que se dizem especialistas no desenvolvimento da heterossexualidade. Eles promovem encontros em que abordam a sexualidade a partir de uma compreensão bíblica. Em 2005, fizeram um congresso de psicologia em um retiro da Jovens com uma Missão (Jocum), uma entidade cristã missionária internacional. Esse evento teve entre os participantes Olivia Corral, uma das fundadoras da Exodus no México.
Entre a cruz e a liberdade sexual
“Não deveria ser surpresa que o país que tem carnaval no Rio também tenha um largo número de pessoas que estão lutando com a homossexualidade”, publicou a Exodus Global Alliance em seu site. O capítulo brasileiro da organização funciona como uma regional à parte da estrutura latino-americana. Em 2002, Willy Torresin, que se apresenta como ex-gay, se tornou diretor da operação que é ligada a iniciativas como o Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses). Sérgio Viula, ex-pastor, foi um dos fundadores do grupo, que funcionava no Rio de Janeiro, mas não atua mais. “Fazíamos abordagens em paradas gay, aconselhamentos, sempre em um viés evangélico”, conta.
No fim dos anos 1990, ele participou de um congresso da Exodus em Viçosa, Minas Gerais. A psicóloga Rozângela Justino, uma das fundadoras da Exodus Brasil, que já foi punida pela Justiça por práticas de cura gay, estava lá. “Tinha um monte de gente que se dizia mudado, mas era nitidamente gay e lésbica no congresso”, revela Viula.
Casado e pai de dois filhos, ele se apresentava como ex-gay diante de sua igreja, mas, na verdade, diz que sempre reprimiu desejos sexuais por conta dos dogmas religiosos. “Era uma tortura psicológica”, confessa. “O conceito propagado pela Exodus é de que você podia sentir desejo homossexual, mas sem praticar, porque era pecado. Porém, um passarinho que está numa gaiola não deixa de ser um passarinho. Não vira outro bicho, só não pode voar.”
Cristianização da homofobia
“A homofobia é um crime inafiançável e imprescritível no Brasil”, lembra o advogado especializado em direito LGBTQI+ Felipe Daier. Práticas de cura gay são proibidas também por uma resolução de 1999 do Conselho Federal de Psicologia. “É a resolução mais atacada da história da psicologia nacional”, comenta o presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Pedro Paulo Bicalho. Ele lembra uma ação civil pública movida em 2017 por 23 psicólogos cristãos – entre eles Rozângela Justino – que conseguiu abrir uma brecha temporária para terapias de reorientação sexual no país.
Bicalho diz que discursos de reorientação sexual fora do âmbito das clínicas de psicologia, como em instituições religiosas, são mais difíceis de serem combatidos. Há, segundo ele, “controvérsias sobre se um discurso pode ou não ser enquadrado como LGBTfobia”. Existe ainda outro impasse, a subnotificação dos casos. “Nem sempre as delegacias reconhecem esses crimes”, considera o advogado Felipe Daier.
Jandira Queiroz é uma ativista de direitos LGBTQI+ brasileira que colaborou com um relatório da Political Research Associates sobre o movimento ex-gay articulado pela Exodus nas Américas. Ela participou de congressos da organização no Brasil, no final dos anos 1990. Diz que, apesar do discurso cristão, da fala de aceitação, as pessoas LGBTQI+ são vistas como pecadoras e doentes. “Não é acolhimento. É a LGBTfobia de uma forma muito violenta e manipuladora”, opina.
“Por trás da argumentação cristã, a Exodus promove a patologização da homossexualidade”, afirma o antropólogo e jornalista Marcelo Natividade, também pesquisador de terapias de orientação sexual e da Exodus no Brasil. Natividade colheu relatos de participantes de eventos promovidos pela organização e suas parceiras durante anos. Conta que alguns dos entrevistados relataram tentativas de adestramento da sexualidade hegemônica. “Ensinavam gays a jogar futebol, lésbicas a lavar e passar e cozinhar, quase como uma pedagogia do gênero.”
Há, segundo o pesquisador, a adoção de uma estratégia de convencimento que associa a homossexualidade à morte e/ou à solidão. “Nas palestras da Moses, por exemplo, mostravam figuras de homossexuais morrendo, decadentes.” Ele continua: “É uma violência emocional e também física porque, nessas abordagens de reorientação sexual – muitas vezes praticadas em comunidades terapêuticas, que acolhem pessoas com adição em álcool e drogas e recebem recursos do governo –, travestis e transexuais são obrigados a realizar trabalhos forçados, a queimarem roupas, objetos como batons e aconselhados a retirar próteses de seios”.
Articulação política
As iniciativas de reversão sexual não ficam restritas ao ambiente religioso. Organizações como a Exodus se articulam politicamente e fazem lobby junto a parlamentares, membros do Executivo e do Judiciário de vários países da América Latina. O objetivo é retroceder com os direitos LGBTQI+ .
As investigações desta série de reportagens encontraram conexões desses grupos com figuras políticas como o ex-congressista e pastor Julio Rosas, no Peru, do partido do ex-ditador Fujimori e vinculado ao movimento “Con mis hijos no te metas”; o deputado paraguaio Bernardo Villalba, que homenageou com a maior distinção da Câmara Legislativa um missionário evangélico autoproclamado “libertador de espíritos homossexuais”.
No Equador, um pastor que prega a reversão da homossexualidade por meio da fé foi candidato à presidência do país. Neste ano, o presidente Lenín Moreno cancelou a aprovação de um novo Código de Saúde que proíbe a oferta de qualquer tipo de terapia que busque a mudança de identidade de gênero ou orientação sexual, criando um vazio jurídico para esse tipo de prática.
Defensores do discurso de reversão sexual se relacionam com parlamentares da frente evangélica no Congresso brasileiro. Os evangélicos são uma das principais forças políticas tanto no Parlamento quanto no governo do presidente Jair Bolsonaro, que tem pastores e pastoras à frente dos seus ministérios. Rozângela Justino, uma das fundadoras da Exodus no país, integra um grupo de psicólogos cristãos que, no ano passado, foi recebido no gabinete da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, do governo de Jair Bolsonaro, a advogada e pastora evangélica Damares Alves. Damares já foi pastora da Igreja Batista da Lagoinha, onde, como contou à Pública, uma jovem foi submetida a violência psicológica por ser lésbica.
Em 2017, integrantes desse grupo – incluindo Rozângela – conseguiram derrubar temporariamente a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe a aplicação de terapias de reversão sexual. “Rozângela Justino fez uma especialização em direitos humanos e foi contratada como assessora parlamentar do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM). Os propagadores da reorientação sexual são pessoas que entendem como funcionam as dinâmicas dos defensores de direitos na sociedade civil e se apropriam dessas metodologias para defenderem suas causas”, analisa a ativista de direitos LGBTQI+ Jandira Queiroz.
A reportagem tentou falar com os representantes da Exodus no Brasil. A organização preferiu não marcar entrevista e enviou uma resposta pelo WhatsApp. No texto, a Exodus nega a prática ou o incentivo de terapias de reorientação sexual. Reproduzimos abaixo:
“A Exodus Brasil é uma rede de cristãos voluntários que procuram entender a sexualidade humana à luz da Bíblia e que se dedica à prática do discipulado conforme descrito em Mateus 28:18-20. Sendo assim, o assunto de práticas terapêuticas para reorientação sexual não faz parte do nosso objeto de pesquisa, tampouco da nossa atuação ministerial.
Seu último contato por WhatsApp afirma que houve relatos, sem nenhuma prova, conectando a Exodus Brasil à práticas de terapias de reorientação sexual. É necessário ressaltar o que já foi afirmado: a Exodus Brasil não pratica e repudia toda e qualquer prática ou incentivo de terapias de reorientação sexual. Afirmar que a Exodus Brasil pratica tais terapias seria caluniar e difamar a imagem da nossa instituição – o que não pode e nem será admitido por essa diretoria.
Temos profundo apreço pela construção de uma sociedade marcada pela cultura de paz e garantia de direitos dos seus cidadãos. Somos movidos pela certeza de que todo ser humano tem valor e total direito a dignidade simplesmente pelo fato de ser humano. Sendo assim, nenhuma forma de violência contra a humanidade nas suas mais diversas possibilidades de expressão condiz com a missão do nosso ministério.” (Correios Braziliense)