Judas volta a ser malhado após dois anos da pandemia

Comunidade do Calafate, na Fazenda Grande do Retiro, prepara o Judas para a malhação; tradição ocorre depois de suspensa na pandemia - Foto: Shirley Stolze | Ag. A TARDE

Corrida de saco, pau de sebo, crianças divertindo-se e um boneco sendo queimado. A malhação de Judas – ou queima de Judas -, é uma tradição que há algum tempo vem perdendo espaço, mas permanece na memória de muitos baianos. E após dois anos sem festa por causa da pandemia, a celebração – que com o passar dos anos ganhou um discurso político -, voltou a todo vapor em algumas comunidades soteropolitanas nesta Semana Santa, a exemplo da comunidade do Calafate, em Fazenda Grande do Retiro, que tem realizado atividades desde quinta-feira, 14.

“Essa é uma tradição de muitos anos,  passada de geração para geração. Muitos dos que continuam com a queima de Judas em suas comunidades e bairros hoje, curtiram  isso quando era pequeno e sabem o quanto as crianças de agora estão perdendo. A tecnologia se fortalece dia após dia, enquanto perdemos essas tradições e brincadeiras, por isso fazemos o possível para mantê-las vivas”, explica Ubirajara Correia, conhecido como Bira, organizador da  malhação de Judas na comunidade do Calafate.

As celebrações na região – que terá dois Judas – começaram na quinta-feira com o baba feminino, onde as mulheres jogaram vestidas de homens, enquanto ontem foi a vez dos homens jogarem de saia. Neste Sábado de Aleluia, a queima do Judas está marcada para às 00h e no domingo, a partir das 14h, reunindo crianças para uma tarde de muita diversão e brincadeiras como corrida de saco, ovo na colher, quebra pote, pau de sebo e outras brincadeiras que tentam viver a queima de Judas de antigamente.

Diversão

Há 55 anos construindo bonecos de Judas para a malhação sob o legado de Florentino Fogueteiro, Fernando Dias da Encarnação Filho, conta que um dos motivos para a queda da tradição tem sido justamente a diminuição de eventos e brincadeiras para as crianças. “A queima em si você até consegue ver por aí, mas a parte feita para as crianças se divertirem não acontece mais tanto assim. Conheci a queima de Judas quando criança e fiz dessa tradição meu ofício, que levo com amor e carinho. E é isso que digo aos pais, para que eles levem as crianças para assistirem, pois só assim esse legado será levado para frente”, ressalta.  

E parece que o esforço para popularizar mais uma vez a tradição tem rendido alguns bons resultados. Fernando conta que ele e seu sócio, Jean Neiva, já perceberam um aumento de quase 60% na procura pelos bonecos em comparação com 2019. Porém, uma coisa ainda incomoda o artesão: o horário da queima. “Sempre fazem a 00h do sábado e muitas crianças não conseguem curtir. Acho que deveriam começar a criar a tradição de fazer às 22h ou 21h, para que elas também possam aproveitar essa parte da festa”, sugere.

Tradição

Pesquisadora de manifestações populares e detentora de uma coleção de mais de 2000 brinquedos feitos à mão, Sálua Chequer, explica que a Malhação de Judas é uma manifestação popular que nasceu com um caráter firmado no coletivo, onde toda a comunidade ajudava na confecção do Judas.

“Lembro de que, quando criança, a estrutura do boneco era feita por uma pessoa, mas toda a comunidade colaborava, um dava a calça, outro a camisa, um terceiro o chapéu e assim todos participavam. O Judas era amarrado no poste, era lido um testamento, que antes não possuía esse teor político e então ele era queimado”, conta.

Era um verdadeiro cortejo pelas ruas e comunidades, tudo fruto de nossas heranças ibéricas (Portugal e Espanha) e do domínio português, conta a pesquisadora, que completa: a queima de Judas é uma tradição que nasce como uma vingança do povo pela traição a Cristo. 

“Historiadores, inclusive, dizem que o próprio Cristo não faria algo do tipo, mas acabou se tornando uma tradição popular. São muitos os cultos pagãos que queimaram bonecos, mas com uma proposta de renovação pelo fogo, pedindo uma colheita farta, por exemplo. Então, de certa forma, também podemos pensar que a malhação de Judas pode ser uma forma de expurga-lo de seus pecados”, explica.

por Priscila Dórea / ATarde

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