Apesar de ter o custo por preso mais caro do país, o superlotado sistema prisional do Amazonas serve quantidade insuficiente de comida, fornece água insalubre de forma racionada e nega tratamento adequado de saúde a internos doentes.
A descrição está no relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). O documento foi concluído no final de abril, após a inspeção de quatro peritos em cinco unidades localizadas em Manaus, em outubro.
Para o MNPCT, os internos dos presídios estaduais são tratados “sob uma mesma perspectiva de humilhação, violação de direitos e violência, travestido de ‘disciplinamento e segurança’.”
Em uma constatação preocupante em tempos de pandemia, o MNPCT apontou a saúde como o principal ponto de violação de direitos humanos. Nas celas de triagem, por exemplo, os peritos encontraram pátios e celas inundados com água parada de esgoto, cheiro insuportável e falta de distribuição de material de limpeza.
“As condições de saúde das pessoas eram realmente deploráveis: praticamente todos eles apresentavam quadro de escabiose [sarna] e dermatite, alguns com feridas purulentas, a maioria com traços de desnutrição”, afirma o relatório sobre essas celas.
“O que mais salta aos olhos é a falta do acesso à saúde, com muitos casos de infecção intestinal, doenças graves de pele, pneumonia e tuberculose. Também é uma gravíssima violação de direitos humanos os casos de pessoas que não recebem atendimento especializado na rede de saúde pública, todos que hoje podem ser considerados casos de comorbidades, como pessoas cardíacas, com doenças crônicas como câncer, pneumonia e tuberculose”, diz a perita Tarsila Flores.
De acordo com o MNPCT, há um racionamento permanente de acesso à água em todas as unidades. Além disso, os peritos encontraram filtros e cisternas com selos de verificação vencidos e vazamentos. Para eles, a água insalubre é um dos motivos “do quadro generalizado de infecção intestinal que atingia a população prisional nos dias de visitação”.
Desde o início da pandemia da Covid-19, o Amazonas registrou três motins e tumultos protagonizados por presos protestando contra as condições insalubres. No sábado, um motim na Unidade Prisional Puraquequara, em Manaus, deixou ao menos 17 feridos.
O episódio mais recente ocorreu na quarta-feira (6), em Parintins, após presos passarem mal. Dois dias depois, a Secretaria estadual de Administração Penitenciária (Seap) informou que a prisão tem 26 detentos infectados –17 encarcerados e 9 em prisão domiciliar.
“Se as estruturas para atendimento à saúde já eram excessivamente precárias, com ausência de medicamentos básicos e falta de estruturas adequadas para isolamento das pessoas doentes, qual é a opção hoje oferecida à comunidade carcerária?”, diz Flores. “Se nada mudar, as unidades prisionais serão um celeiro de infecção pela Covid-19”.
Sobre a comida, o relatório afirma que, com a exceção de uma unidade prisional, são servidas apenas três refeições diárias. O informe ressalta o baixo valor nutritivo e até comida estragada.
O café da manhã tem apenas “um pão com manteiga, leite e café ralo”. Na hora do almoço, a demora na entrega faz com que a comida chegue estragada para quem recebe por último. “A alimentação, nestas condições de péssima qualidade, se constitui como uma ferramenta de tortura”, afirma o documento.
Para o professor de sociologia da Ufam (Universidade Federal do Amazonas) Fabio Candotti, o trabalho do MNPCT respalda denúncias recorrentes, protocoladas por familiares de internos, sobre as péssimas condições dos presídios e acende o alarme sobre o impacto do novo coronavírus na saúde dos presos.
“O relatório se torna mais desesperador quando se pensa na situação da Covid-19”, afirma Candotti, membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas. “A Seap tem demonstrado que não tem condições de cuidar dos presos durante a pandemia.”
“Uma característica que não pode ser desprezada é a do recorte racial da população carcerária. Muitos entrevistados se auto-reconheceram como negros (pretos ou pardos), a despeito de ser possível identificar visualmente a grande presença de população indígena”, afirma Flores. “Sempre foram negros e indígenas os corpos exemplares à punição, à escravização e à tortura. A realidade das prisões manauaras não é diferente.”
Privatizado, caro e ineficiente Para o MNPCT, as condições insalubres das cinco unidades prisionais, todas sob administração privada, contrastam com o custo elevado. No maior presídio do Amazonas, o Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), o estado desembolsa R$ 5.466,03 por mês. É mais que o dobro do custo médio de um preso no país, R$ 1.917 mil/mês, segundo cálculo do Tribunal de Contas da União (TCU).
“Em face dos valores pagos às empresas e o serviço oferecido, observado pelo MNPCT e denunciado muitas vezes, fica nítido que não é um resultado condizente com o que o estado do Amazonas investe para pagamento das empresas”, afirma Flores.
Além do custo elevado e da prestação de serviço ruim, as unidades prisionais masculinas de Manaus estão superlotadas. Em 29 de abril, eram 4.864 presos para 2.777 vagas, ocupação de 175%.
O sistema prisional da capital amazonense é também um dos mais violentos do país. Somados, os dois massacres, ocorridos em no Ano-Novo de 2017 e em maio de 2019, deixaram 122 mortos. O motivo foi a disputa entre facções pelo controle do narcotráfico.
A reportagem procurou a Seap na quinta-feira (7) questionando o teor do relatório. A assessoria de imprensa solicitou o envio de perguntas por escrito, mas não houve resposta até a conclusão deste texto. A administração dos presídios é atribuição do governo estadual, comandado por Wilson Lima (PSC).(Bahia Notícias)