Às voltas com a tramitação de um projeto de lei sobre fake news, congressistas brasileiros moveram pelo menos 479 ações na Justiça que pedem remoção de conteúdo em veículos ou redes sociais. O número se concentra em 233 políticos, dos 594 eleitos para a Câmara dos Deputados e o Senado.
Entre os 513 deputados federais, 196 são autores de 354 ações judiciais para retirar conteúdos. São 293 os pedidos que alegam difamação e, em 87% deles, o réu é um blog, um veículo de comunicação ou uma rede social, como Facebook, Twitter e WhatsApp.
O levantamento foi feito pelo projeto Ctrl+X, da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). A organização assiste com preocupação à junção entre a postura dos legisladores na Justiça e a tramitação do projeto de lei sobre fake news.
Agora em discussão na Câmara, o projeto de lei da fake news foi aprovado pelo Senado no final de junho.
O texto foca no comportamento das contas. Ficam vedadas nas plataformas os robôs não identificados e as contas inautênticas, que seriam usadas com o propósito de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público.
Outro ponto do projeto prevê que plataformas possam pedir documentos de identificação de usuários em algumas situações, como na denúncia de uma conta ou em caso de ordem judicial.
Além disso, o projeto prevê que, após eventual decisão das plataformas em moderar um conteúdo, o ofendido deve ter direito de resposta “na mesma medida e alcance do conteúdo considerado inadequado”.
A proposta inclui ainda a criação de um conselho estatal com poder de regulação e uma instituição de autorregulação das empresas que seria responsável por elaborar regras e adotar medidas sobre como rotular e colocar advertências em conteúdo caracterizado como desinformação.
Dos quase 200 deputados que pediram remoção de conteúdo, a maioria, 118, moveu apenas uma ação. Na outra ponta, o deputado Camilo Capiberibe (PSB-AP) foi o que mais fez pedidos como esse: foram 13, a maioria em 2014, quando tentava a reeleição ao Governo do Amapá.
Dez ações do deputado são contra redes sociais e outras três contra veículos de comunicação —uma rádio, uma emissora e um jornal impresso. O deputado citou “propaganda eleitoral negativa” em sete.
Contra a rádio Antena 1, alegou-se que a emissora deu “início a uma engendrada campanha de veiculação de fatos negativos e ofensivos à figura do filiado do representante, governador do Estado do Amapá, Carlos Camilo Góes Capiberibe, tentando a todo momento incutir na mente do eleitor que o gestor não tem capacidade de gestão, e que não deve ser votado”.
O deputado afirma que parte dos processos foram feitos durante a sua campanha à reeleição no Amapá, onde foi governador de 2011 a 2014. “Especialmente na eleição, eu vivi um ataque muito forte de fake news pelas redes sociais”, diz Capiberibe.
Ele lembra que o vencedor do pleito e atual governador do estado, Waldez Góes (PDT), foi condenado por abuso dos meios de comunicação pelo Tribunal Regional Eleitoral do Amapá em fevereiro de 2019. Goés está inelegível por oito anos.
Questionado sobre o projeto sobre fake news, que deve ser colocado em pauta nas próximas semanas na Câmara dos Deputados, Capiberibe diz ser “favorável a uma legislação que combata fake news. Não dá para continuar terra de ninguém”.
“Claro que isso não é uma tarefa simples. Tem que ter espaço para garantir a privacidade e a liberdade de expressão”, diz o deputado.
A assessora jurídica da Abraji Juliana Fonteles afirma que, da forma como está, o projeto das fake news pode refletir negativamente na liberdade de expressão de jornalistas e ativistas.
O projeto poderia, segundo ela, tirar o conflito do Judiciário e colocar a decisão na mão das plataformas. “A maioria das ações que são levadas ao Judiciário não resulta na retirada do conteúdo”, afirma.
“Após incorporar sugestões da sociedade civil, o PL saiu do senado mais focado no controle de comportamento ao invés de conteúdo. Ainda assim, o rastreamento em massa e a possibilidade de determinação de direito de resposta pela plataforma promovem um ambiente de insegurança, arbitrariedade e vigilantismo, que intimida e causa autocensura nos usuários”, argumenta a advogada.
Em julho, a ONU emitiu alerta à missão brasileira em Genebra com preocupações sobre a rapidez do processo e os riscos à privacidade e à liberdade de expressão.
A rastreabilidade de mensagens citada por Fonteles é um dos pontos mais polêmicos do projeto. Segundo o dispositivo, os registros das mensagens que forem encaminhadas para grupos por mais de cinco usuários e recebidas por mais de mil, em um período de 15 dias, devem ser guardados por três meses. O conteúdo não deve ser armazenado.
Especialistas defendem que, para viabilizar esse recurso, seria preciso armazenar o registro de toda e qualquer mensagem enviada pelos aplicativos e que o mecanismo poderia enfraquecer a criptografia.
“A gente não tem a segurança de que são mensagens ilegítimas”, afirma Fonteles, para quem esse artigo transforma o cidadão em um transgressor em potencial. “E pode ser ineficaz, porque as milícias digitais têm outras formas de atuar na divulgação de informações falsas.”
Para a advogada, o momento também não é o mais propício. Desde março, o Congresso está trabalhando remotamente por causa da pandemia do coronavírus, o que, segundo ela, atrapalha a participação da sociedade civil na discusão.
Se pudesse contribuir mais ativamente, a sua proposta de combate a fake news seria bem diferente da levantada pelo projeto. “A gente acredita que passa por educação midiática e por outras formas de combate que não façam com que as plataformas, empresas privadas, regulem o que é conteúdo falso na internet”.
A quantidade de ações movidas pelos congressistas, em sua opinião, mostra uma postura autoritária.
O político do Congresso que mais moveu ações foi Eduardo Braga, senador que foi favorável ao PL. Ele é autor de 15 ações, e 13 delas alegam difamação. Apenas um dos processos não é de 2018, quando disputou a vaga na Casa. A reportagem não teve retorno de Braga até o fechamento da reportagem. (Politica Livre)