Os planos de saúde querem oferecer serviços, como a realização de cirurgias eletivas, para quitar a dívida bilionária com o Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com informações do superintendente executivo da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Marcos Novais. Atualmente, a fila de espera por cirurgias eletivas possui 1.082.795 pacientes, que aguardam para tratar casos desde a retirada de vesícula biliar até a remoção de útero e vasectomia. A dívida é resultante de atendimentos realizados no sistema público a pacientes que também possuem planos de saúde. Como o sistema é único, se um cidadão que possui acesso a serviços privados de saúde sofrer um acidente e for encaminhado ao pronto-socorro do SUS, a lei determina que a conta do atendimento seja enviada para a sua operadora, apenas para citar um exemplo em casos de emergências.
Entre janeiro de 2012 e março de 2022, a dívida dos planos com o SUS chegou a R$ 10 bilhões, dos quais R$ 6,1 bilhões foram impugnados, ou seja, foram contestados administrativamente ou judicialmente, de acordo com informações da Agência Nacional de Saúde (ANS). Foram pagos R$ 4,1 bilhões – outros R$ 819 milhões foram parcelado. A dívida pendente de cobrança ainda é de R$ 1 bilhão, enquanto os valores suspensos judicialmente chegam a R$ 941 milhões. Por conta dessa estratégia, o volume da dívida só cresceu nos últimos anos, por diversos fatores. Um dos principais problemas, de acordo com Novaes, é que a cobrança por parte do Ministério da Saúde é lento, ocorrendo cerca de um ano depois da realização do atendimento no SUS. “Além do valor do procedimento executado no SUS, o sistema cobra uma taxa de 50% a mais no valor total a ser repassado à operadora”, explica.
A taxa de 50% é motivo de disputa judicial entre as operadoras e o SUS. Como 70% do mercado de saúde privada enfrenta dificuldades para equilibrar as contas entre despesas e receitas, o setor começou a discutir propostas para sanar a dívida. “Por que não podemos oferecer serviços ao SUS, do que a nossa rede oferece, como cirurgias eletivas. [Seria viável] Que a gente pudesse eventualmente, em vez de pagar valor financeiro ao SUS, realizar procedimentos cirúrgicos”, ressalta Novaes.
Além disso, segue o representante dos planos, a Abramge também reivindica do SUS um aprimoramento do sistema de cobrança, para o qual apontam a necessidade de transparência sobre os procedimentos realizados e a imediata comunicação às operadoras de que foram realizados tais procedimentos no sistema público. “Queremos ser avisados quando o usuário der entrada no hospital público, com comunicação entre municípios e Estados”, cita Novaes como exemplo. Na primeira semana de junho deste ano, o Ministério da Saúde divulgou o relatório do Programa Nacional de Redução de Filas (PNRF), que pretende repassar recursos para reduzir a espera por cirurgias, exames e consultas na rede pública de saúde. O documento atesta que os 26 estados e o Distrito Federal possuem uma fila de espera por cirurgias eletivas é de 1.082.795 pessoas em todo o Brasil. De acordo com o anunciado, ao menos 487.646 cirurgias serão realizadas por meio do programa do governo federal. Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou.
No ranking dos 10 principais procedimentos cirúrgicos com maior demanda a serem realizados estão:
colecistectomia (retirada da vesícula biliar);
hernioplastias (tratamento de hérnia em diferentes partes do corpo);
histerectomia (remoção do útero);
laqueadura e vasectomia (procedimentos de esterilização);
tratamento cirúrgico de varizes.
Mecanismos da dívida
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) explica que o ressarcimento ao SUS ocorre quando os serviços de atendimento previstos nos contratos de planos privados de assistência à saúde são prestados aos consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS em todo o território nacional. “O processo do ressarcimento se insere na lógica de regulação do setor de saúde suplementar, na medida em que desestimula o não cumprimento dos contratos celebrados e impede o subsídio, ainda que indireto, de atividades lucrativas com recursos públicos”, diz a nota do órgão.
O processo de ressarcimento ao SUS se inicia quando a ANS recebe do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) a base de dados com informações sobre os atendimentos ocorridos nas redes pública e privada conveniada ao SUS e faz a conferência dessas informações com o seu Sistema de Informação de Beneficiários (SIB). Após a conferência, uma vez identificado que consumidores de planos de saúde utilizaram os serviços do SUS, são encaminhadas notificações às operadoras, por meio de Aviso de Beneficiário Identificado (ABI), para efetuarem o pagamento dos valores apurados ou apresentarem defesa. Cada ABI refere-se a atendimentos ocorridos no SUS em um trimestre, havendo a abertura de um processo administrativo para cada operadora.
A ANS esclarece que a rede SUS, própria ou contratada, utiliza documentos padronizados pelo Ministério da Saúde para o registro de atendimentos, que não possuem campo para registro de plano de saúde, visto que o atendimento ao SUS é gratuito e direito de qualquer cidadão, sendo este coberto ou não por plano privado de saúde. Posteriormente, a base de dados contendo o registro destes documentos é repassada para a ANS, que procede ao cruzamento de dados com sua base de beneficiários de planos, de forma a identificar pacientes que estavam cobertos na época do atendimento. Depois da fase de notificação das operadoras, o procedimento de defesa instaurado no âmbito da ANS é composto por duas instâncias: a primeira é inaugurada com o protocolo de uma impugnação, em que a operadora poderá alegar o motivo pelo qual o ressarcimento não é devido; a segunda somente tem início se for apresentado um recurso contra a decisão anteriormente proferida.
Contudo, nem todo atendimento de beneficiário de plano de saúde na rede é passível de ressarcimento ao SUS. Não cabe ressarcimento nos casos em que:
o beneficiário está em período de carência contratual;
o atendimento foi realizado fora da área de abrangência geográfica do contrato;
o procedimento realizado não faz parte do rol de cobertura obrigatória.
Além disso, é possível também que a operadora pleiteie a redução do valor notificado, alegando, para tanto, a existência de cláusula de coparticipação. E para confirmar se haverá ou não a cobrança, a ANS verifica os argumentos e os documentos enviados pela operadora. Se houver valor devido, caso a operadora não efetue o pagamento, o débito será inscrito em Dívida Ativa e no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN), estando sujeito a acréscimos e encargos legais. Ao final, todos os valores arrecadados pela agência reguladora são encaminhados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS), que define a destinação dos recursos.
A efetiva cobrança do ressarcimento ao SUS, com a emissão da Guia de Recolhimento da União (GRU), pode ocorrer ao fim do prazo de defesa em primeira instância, quando não há a apresentação da respectiva impugnação pela operadora; ou ao fim do processo administrativo, quando a operadora, após o devido contraditório e ampla defesa, não prospera em suas impugnações. Do total cobrado no ressarcimento ao SUS de janeiro de 2012 a março de 2022, uma parte foi efetivamente paga pelas operadoras de planos de saúde, enquanto outra encontra-se em parcelamento, ou está pendente (débito vencido ainda não inscrito em Dívida Ativa) ou suspensa judicialmente. Abaixo seguem os valores discriminados:
Dados processuais atualizados em maio de 2023, referentes a atendimentos ocorridos no SUS entre janeiro de 2012 e março de 2022:
Atendimentos ocorridos no SUS de janeiro de 2012 a março de 2022, com atualização dos dados em maio de 2023.
Embora a dívida total esteja na casa dos milhões, o valor pago ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) manteve-se numa escala inferior nos últimos anos. Em 2018, foram R$ 783,3 milhões; R$ 1,1 milhão em 2019; R$ 816 mi, em 2020; R$ 884 milhões em 2o21 e outros R$ 971,3 milhões, em 2022.