Uma coisa é faltar máscaras para profissionais de saúde e para doentes — essa é uma duríssima realidade em muitos países, inclusive o Brasil. E, entendo, a falta de um recurso essencial na arena de luta contra o coronavírus até justificaria por si só todo um movimento para desincentivar as pessoas a estocarem o acessório como quem esvazia latarias nas gôndolas dos supermercados em puro desespero ou, vá lá, egoísmo.
Outra coisa muito diferente, porém, é pensar que máscaras não têm serventia para quem não apresenta sintomas de covid-19. Aviso: se qualquer criatura buscar um único trabalho com aval da ciência afirmando o disparate não o encontrará. Ele não existe.
Para uma corrente cada vez maior de pesquisadores, contudo, parece que não dá mesmo para sair por aí de boca e nariz descobertos. Esse pode ser um terrível equívoco, como afirmam artigos assinados por pesquisadores sérios, um deles publicado há três dias na revista americana Science, em que médicos chineses na linha de frente do combate à covid 19 apontam em coro que a população em geral deixar de usar máscaras seria um dos maiores equívocos pelo mundo afora — por outro lado, dizem mais especialistas, usá-la amplamente talvez seja um dos grandes acertos do povo sul-coreano para segurar a transmissão da infecção em seu país.
“Sem dúvida, o uso corrente de máscaras foi um fator determinante de sucesso para o controle da transmissão em países asiáticos”, observa o oncologista Sandro Martins, pesquisador da Fiocruz, em Brasília, e ex-coordenador de Atenção Especializada no Ministério da Saúde, função que exerceu por mais de três anos, até janeiro de 2020. Nos países asiáticos, até por questões culturais, se uma pessoa dá um único espirro ou tosse, imediatamente passa a vestir máscara até para andar com o cachorro. Em tempos de coronavírus, claro que o costume se expandiu para todos os cidadãos que, por um motivo ou outro, precisaram circular por ruas e outros espaços.
Vivemos uma pandemia na qual 78% das pessoas que passam a infecção adiante se sentem bem, obrigada, mas espalhando o coronavírus quando abrem a boca até para dizer exatamente isso: “estou bem, obrigada”. E assim nascem boas discussões. “Há uma tendência a valorizar o uso da máscara cirúrgica para todos na rua”, admite o infectologista Ricardo Tapajós, professor de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Mas ele também adverte com veemência: “Esse uso protegeria a sociedade, não o próprio usuário da máscara. E, nesse sentido, até atrapalha, porque ele fica com uma falsa impressão de segurança. Pode servir apenas para diminuir propagação por pessoas assintomáticas”.
O fato é que, só pela fala, o agente causador da confusão pode flutuar no ar em partículas ainda menores do que aquelas que ejetamos quando espirramos ou tossimos — que, no início dessa pandemia, eram o foco principal das preocupações dos médicos. “Estas partículas maiores, que de fato são repletas de vírus, voam por menos tempo se comparadas às menores, que flutuam por até três horas e vão se espalhando e espalhando pelo ambiente, feito uma nuvem”, descreve o patologista Paulo Saldiva, professor da Universidade de São Paulo (USP). São detalhes, às vezes um tanto sinistros, que a ciência passa a conhecer mais profundamente agora, no que diz respeito a o novo coronavírus. As gotículas maiores que soltamos pela boca e pelo nariz têm de 1 a 1,5 micron — micron equivale a 1 milionésimo de metro. Quando tossimos, nós as ejetamos a uma velocidade incrível de 10 metros por segundo. Não dá tempo para qualquer um sair da frente. Mas a maioria despenca no chão — ou cima do móvel, na parede, na roupa e na pele de quem estiver por perto — a 2 metros de distância. Isto é, sem aquele gesto básico de proteger a boca com o cotovelo para impedir esse jato ou parte dele.
No espirro, as gotículas grandalhonas — o que, sei, soa a contradição em termos — geralmente têm uma velocidade ainda mais impressionante de 50 metros por segundo. Mas nunca chegam nem perto disso. A maioria cai — de novo, no chão ou no que estiver por perto. Faz uma curva apontando para o solo a 1,5 metro de distância. Tosses e espirros, portanto, reforçam a recomendação de, se por acaso cruzar com alguém, manter literalmente boa distância física. Seria 1 metro, no mínimo. Ou 2 metros, o ideal.
Agora, o problema é : existem também os malditos aerossóis menores do que 1 micron. Eles se espalham por 6, 8 metros até, na tosse ou no espirro — sem a barreira de uma máscara, haja então o raio do distanciamento social! Saem também pela boca quando falamos, só que em quantidade menor, claro. Menor ainda se falamos baixo e… bem maior, se por acaso gritamos. Popular, cuspir raiva.
O pior, como já foi explicado, é que não aterrissam depressa. Passeiam pelo ar. Em uma avenida, ao menos, um vento pode espalhar esses balões microscópicos com seus passageiros desagradáveis, dispersando-os e aliviando o risco. No entanto, no supermercado e em outros locais fechados, a história é outra… Por ali ficam. No ar que respiramos. Por umas três horas.
Busquei também a opinião do biólogo molecular Luiz Gustavo Bentim Góes, do Instituto de Ciências Biomédicas da mesma USP, considerado um dos maiores estudiosos de coronavírus do país. “Se não fosse a ameaça de faltarem máscaras em situações críticas, eu diria que, sim, na situação atual todos deveriam usá-las sempre, até mesmo aquelas pessoas sem o menor sintoma. Isso certamente teria um impacto importante na transmissão”, opina.
Usada de maneira correta para não agravar o risco de infecção, em tese qualquer barreira física ajuda a conter a covid-19— umas mais e outras menos. Mas, para quem está sedento, ouvi, melhor um gole de água se não dá para beber o copo inteiro. Será então que o “copo inteiro” seria a famosa máscara padrão n95, que em tese não deixa passar quase nada? De jeito algum! “Estas, para começo de conversa, serão artigos tão ou mais disputados para salvar vidas do que ventiladores em hospitais daqui a muito pouco tempo”, lamenta o professor Saldiva.
E tem mais: entregar nas minhas mãos ou nas suas uma máscara profissional assim é como pedir para quem sempre dirigiu um Fusca sair acelerando uma Ferrari. Desastre na certa. Saiba: uma máscara desse padrão mal vestida dá quase na mesma do que sair de rosto nu respirando fundo. Esqueça. Deixemos esses modelos para quem mais precisa e, sobretudo, sabe vesti-las. Aliás, tão ou mais importante, sabe despi-las. “Na maior parte das vezes, é no momento de se desparamentar — tirar a máscara n95, óculos, avental etc –que os profissionais de saúde se infectam, quando não prestam atenção nas orientações para isso.”
E sempre vale reforçar: materiais de proteção, como a máscara n95, são absolutamente essenciais para o profissional de saúde que está cuidando de todos nós neste momento, “especialmente em procedimentos que geram muitos aerossóis, como intubar, aspirar, examinar a região da osofaringe”, diz Ricardo Tapajós. Portanto, deixemos, por favor, as máscaras para eles em primeiro lugar.
Qual seria a saída então?
Pergunto ao professor Tapajós se adiantaria usar máscaras feitas em casa ou mesmo mum lenço na cara. Ele responde que para questões sobre essa pandemia o final é sempre o mesmo: “Não sabemos ainda de nada a respeito dessa doença. Pelo menos, no meu entendimento de saber científico. Responderemos a todas as perguntas como essa em dois anos — ou não”.
Mas existe gente dizendo que a saída para os que não encontram nem sequer máscaras cirúrgicas simples ou querem deixá-las para mais precisa é lançar mão de versões caseiras. “Algum grau de proteção em relação a microgotículas com vírus, especialmente se há proximidade e em ambientes fechados, essas máscaras sempre irão oferecer”, diz Sandro Martins, da Fiocruz. “E, espero, em breve o Ministério deverá orientar a população sobre os melhores materiais a serem utilizados”, diz ele.
Não faltam tutoriais na web ensinando todo mundo a produzi-las, bastando tecido e elástico. A eficácia varia muito conforme o pano, é verdade. “Mas as máscaras, até mesmo as caseiras, são essenciais principalmente para quem pega transporte público. As estações de metrô, por exemplo, são ambientes em que provavelmente deve existir muito coronavírus do ar”, opina Paulo Saldiva.
Evite usar errado e piorar as coisas
Existem alguns erros graves, porém, na hora de usar uma máscara qualquer. Cuidado. Para começo de conversa, qualquer máscara deveria ser para uso único. Vestiu? Joga fora depois. Mas esse é um mundo redondo que não existe mais… Até dentro de grandes hospitais, os profissionais de saúde lançam mão de truques para reutilizá-las.
Então, na vida como ela é, seguem dicas para quem não está dentro dos hospitais, nem sabe como fazer. Um grande erro é ficar com qualquer máscara de tecido no rosto por muito tempo. “Depois de algumas horas, ela satura”, avisa Paulo Saldiva. Ou seja, não ajuda em mais nada. Outro é deixá-la solta na bolsa, na mala de trabalho, no bolso — isso nem pensar! Até agrava o perigo. “O correto é, chegando no local de trabalho, por exemplo, e se não for usá-la lá, guardar esse acessório em saco plástico extremamente higienizado”, avisa o professor. Segundo ele, o ideal mesmo seria levar duas ou três ao sair de casa. Cada uma delas em um saco plástico muito bem limpo. E, desse modo, usar uma máscara para pegar o ônibus na ida e outra para pegar o ônibus na volta.
Ao chegar em casa, o acessório — se não foi descartado — precisa ser imediatamente lavado. Como? Com água e sabão. “Não adianta usar a máscara de ontem, se ela não passou pela limpeza. Mas qualquer sabão dá conta de acabar com o vírus, se ele ficou retido no tecido”, garante Paulo Saldiva.
Lembre-se ainda que a máscara deve cobrir bem todo o nariz e a boca — e não tem mistério nisso, até crianças conseguiriam. Mas não adianta usá-la para descê-la ou até mesmo tirá-la na hora de falar com alguém — ao chegar no caixa da farmácia, por exemplo, se por acaso você precisar ir a uma e o outro indivíduo não entender o que você está dizendo. Não tire a máscara e, sim, repita a fala. Muito menos resolve vestir máscara e abaixá-la ligeiramente para cochichar nos ouvidos de quem está ao lado, como já assistimos em entrevistas coletivas na televisão. Outro mau exemplo.
Fim do preconceito
Terminar com o estigma dos mascarados é fundamental, na opinião de Paulo Saldiva e de vários artigos publicados a respeito. Uma pessoa que usa máscara na rua não é alguém doente espalhando coronavírus. “Ao contrário, é um indivíduo responsável, que está cuidando de não passar uma doença que ele pode ter, só que ainda sem sintomas. No meu modo de ver, neste momento usar máscaras é prova de cidadania”. Portanto, a máscara tem tudo para ser o novo pretinho, peça básica da elegância na estação da pandemia.
por Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.