A repatriação de patrimônio cultural oriundo de antigas colônias virou tema de discussão em Portugal depois de repercutir em outros países europeus. O país se prepara para fazer um levantamento junto a museus lusitanos, mas ainda não fez qualquer promessa de que, de fato, devolverá peças hoje pertencentes ao acervo português.
O que existe, por enquanto, é apenas a manifestação pública de interesse em investigar a questão, expressa em declarações do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva. “Este é um debate que ocorre em todos os países, nomeadamente nos países europeus que foram potências coloniais, e Portugal não é exceção. Esta é uma discussão que deve incidir sobre casos concretos, e não só sobre princípios abstratos”, resume, em nota, a pasta da Cultura.
Desde que o ministro começou a falar sobre o tema, no fim de novembro, o tema vem dividindo opiniões no país, assim como quase tudo o que envolve o legado colonial português. O partido de ultradireita Chega apresentou um pedido para que Adão e Silva prestasse esclarecimentos ao Parlamento sobre a possibilidade de devolução das obras, mas a requisição acabou reprovada.
No começo de 2020, o Partido Socialista, que governa o país desde novembro de 2015, ajudou a rejeitar uma proposta semelhante à que se cogita agora. O “Programa para a Descolonização da Cultura” incluía a formação de um grupo de trabalho para realizar um levantamento nacional do patrimônio trazido de ex-colônias portuguesas e em posse de museus e arquivos nacionais. O objetivo era permitir que os itens pudessem ser “facilmente identificados, reivindicados e restituídos a Estados e comunidades de origem”.
Além dos entraves políticos, o esforço necessário para fazer um inventário de dimensão nacional também é um obstáculo. Já existem, no entanto, iniciativas de identificação de procedência em curso. É o caso do projeto “Transmat — Materialidades Transnacionais (1850-1930): Reconstituir Coleções e Conectar Histórias”, que vem estudando a origem das peças das coleções etnográficas do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, e do Museu Municipal Santos Rocha, em Figueira da Foz.
O grupo multidisciplinar faz uma análise aprofundada dos artefatos, traçando em detalhes raízes e caminhos percorridos até chegarem às coleções em Portugal. “Seguimos uma metodologia de reconstituição do itinerário. Recolhemos dados e fontes históricas que o museu possui sobre ele e seguimos pistas. Normalmente são os nomes dos doadores. Tentamos perceber quem são. Normalmente eram pessoas ligadas às antigas colônias, como administradores coloniais, militares ou missionários”, explica Elisabete Pereira, coordenadora do projeto e pesquisadora da Universidade de Évora.
Ao longo da pesquisa, o Transmat já identificou peças com potencial percurso problemático até Portugal. Isso significa que são artefatos provavelmente obtidos mediante violência e exploração de comunidades locais. É o caso de uma panela oriunda do Brasil, atribuída ao povo indígena kaingang e provavelmente obtida no que os colonizadores chamavam, eufemisticamente, de “operação de pacificação”.
Em junho de 2021, a ICOM-Portugal, comissão portuguesa do Conselho Internacional de Museus, abriu um inquérito para identificar o patrimônio proveniente de fora da Europa em posse de instituições em Portugal. O questionário foi enviado a museus públicos e privados, em um esforço da instituição para ajudar a promover o debate sobre o tema. A participação, no entanto, foi baixa.
“A fraca adesão pode também refletir a falta de funcionários e de recursos nas instituições. Houve um desinvestimento nas instituições, que padecem de várias carências, até mesmo ao nível dos vigilantes para as coleções”, pondera Pereira, do Transmat.
Em outros países europeus, como França e Alemanha, a discussão -também sempre imersa em polêmica- está mais avançada. Em 2018, a pedido do presidente Emmanuel Macron, Paris produziu um relatório sobre o patrimônio africano em seus museus. O documento indica que há mais de 90 mil peças oriundas das antigas colônias nas coleções públicas francesas, muitas delas fruto de saques e pilhagens.
As conclusões do estudo foram contestadas por especialistas e diretores de museus, e o dossiê ficou em segundo plano. Por enquanto, apesar do documento e da declaração de Macron de que tem a intenção de intensificar a devolução de peças aos países de origem, poucos objetos de fato foram devolvidos. Entre as notáveis exceções estão um sabre, enviado ao Senegal, e 26 peças de bronze, repatriadas ao Benim.
Outro país que realizou um inventário sobre a origem do patrimônio nos museus é a Bélgica, que começou a devolver artefatos à República Democrática do Congo, sua ex-colônia. Em fevereiro, o primeiro-ministro Alexander De Croo deu um passo considerado de grande simbolismo, entregando às autoridades congolesas a lista de mais de 84 mil peças no acervo do país europeu. Museus belgas querem um processo de negociação para permitir que parte das peças seja mantida, mas com o pagamento de uma espécie de aluguel compensatório aos congoleses. A negociação continua em curso.