Empata moda: assim pode ser definida, sem cobrir as vergonhas, uma reportagem do Correio da Bahia publicada em 30 de julho de 1980, que desnudava um recém estabelecido point de naturismo em plena região central de Salvador. A tal modinha moderninha, que o jornal definiu como “banho de mar nos trajes de Adão e Eva”, fora lançada por estudantes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), os quais batizaram a praia de nudismo, improvisada na encosta do Corredor da Vitória, de Shangrilá.
O nome fazia referência a um local paradisíaco descrito no livro ‘Horizonte Perdido’ (1933), de James Hilton, mas que o jornal preferiu comparar a um point do nudismo nada ficcional, na costa francesa. “Descendo pouco mais de cem degraus, a partir do Corredor da Vitória, em pleno centro da cidade, você pode chegar a Shangrilá, uma espécie de paraíso para gente muito escolhida: uma praia onde você pode ficar tão à vontade como só em Saint-Tropez. Todo mundo literalmente nu à luz do sol baiano”, dizia uma primeira reportagem, que parecia estar num ponto equidistante entre a denúncia e a galhofa.
“Um grupo de jovens universitários, descontentes com o mundo como todo jovem que merece este nome, procura mudar em versos o sistema. Um jeito muito à vontade de fazer Riviera ao sol baiano, que não respeita inverno para quem gosta de tirar a roupa toda”, comentava o texto, assinado pelo repórter Alberto Sobral.
A turma do desbunde não era lá muito volumosa, mas com a bunda de fora, captada pela repórter fotográfica Sônia Carmo, parecia multidão. “Shangrilá. Nome de mar, local ainda disputado por meia dúzia de homens e mulheres para a prática do nudismo. Pouca gente sabe que em plena área da Vitória, por trás do Restaurante Universitário, está uma belíssima ponta de mar, voltada para o Iate [Yacht] Clube da Bahia, frequentada, especialmente, por estudantes universitários e, a partir de hoje, naturalmente, por curiosos”.
O grupo, destacava a matéria, “era restrito — mais parecendo uma família”, e se divertia “sem roupa, apreciando a Ilha de Itaparica (à frente), a praia da Gamboa (à direita) e o Iate Clube (à esquerda)”. Ao citar Itaparica, lembra que, “antes da classe média invadir a região através dos loteamentos”, também rolavam relatos de peladões circulando por lá, assim como em Arembepe.
Contra o tédio das aulas
O motivo para o grupo se retar, tirar a roupa e ficar nu também chega a ser analisado pelo repórter, num ensaio de mergulho sociológico na praia dos peladões. “Como a repressão é grande nessa província e nada que bula com os padrões da moral da sociedade tupiniquim fica sem uma resposta, a rapaziada, antes frequentadora assídua do Porto ou do Farol da Barra, passa a utilizar a praia de Shangrilá. Inicialmente tomando banho e pescando, em meio a conversas sobre o tédio das aulas, a falta de estímulo para o estudo e as perspectivas do mercado de trabalho, o grupo de homens e mulheres curtia o sol”, anotava a reportagem intitulada ‘A Riviera é na Vitória: todo mundo nu na praia’.
Foto: Sônia Carmo/Arquivo Correio |
Os papos astrais que rolavam por lá também foram reportados: “Em Shangrilá não há possibilidade de repressão intelectual, política, sexual qualquer que seja. A confraternização é geral. O amor é a palavra de ordem. Os jovens mantêm o simbolismo da pureza. Em Shangrilá não há espaço para discussões estéreis, voláteis. Os intrusos são rechaçados, tanto por não possuírem ‘cabeça’ para acompanhar o ritmo natural da coisa, como pelo fato de se tornarem, em função da primeira característica, pessoas indesejáveis”.
Prova da pureza de intenções da turma, defende o repórter, foi uma tentativa malograda de intercâmbio entre “os poetas do Shangrilá” e gente com segundas intenções, que chegavam em embarcações.
“Se existe tanta pureza e lirismo em Sangrilá, já começam a aparecer ‘coisas’ no local. Um só exemplo são as lanchas, que partindo da Iate Clube, nos dias de orgias, ancoram no local, solidarizando-se com a rapaziada pelada. A confraternização ainda não foi incorporada pelos grupos”.
Fim do sonho
Quase uma semana depois, o Correio voltou ao lugar e não achou mais ninguém para contar a história — ao menos sem roupa. Numa segunda reportagem, publicada em 4 de agosto, e intitulada ‘Shangrilá acabou?’, afirma que “uma noção de defesa da privacidade em praia pública fez com que os poetas nudistas de Shangrilá perdessem a desinibição com que foram registrados pela imprensa.”
“No fim de semana a praia estava praticamente deserta e os poucos frequentadores usavam tímidos biquínis e sungas, além de uma certa agressividade contra os supostos invasores de seu paraíso-para-iniciados”, neste caso, os jornalistas.
“Desde a semana passada que os jovens universitários frequentadores de Shangrilá abandonaram a praia. Os poucos que apareceram preferiram o biquíni e a sunga e nem o topless foi tentado. A revolta era geral, principalmente depois que alguns curiosos representantes de órgãos de imprensa do sul do País invadiram o paraíso, tentando saber detalhes da pequena colônia de nudismo”, diz o texto, dando a dimensão que a história ganhou.
Sem se identificar, um funcionário do Restaurante Universitário contou que o Shangrilá passou, da noite para o dia, a ter um acesso muito grande de curiosos. “A praia era quase que desconhecida e a moçada ficava à vontade, sem perturbar ninguém”, relembrou, em tom de lamentação.
Ele contou ainda que o nudismo no Shangrilá já acontecia há algum tempo e de forma natural.
“Eles não faziam isto para aparecer, do contrário preferiam um local público. O fato dos rapazes ficarem nus não provocava bagunça. Era tudo muito natural”, analisou o funcionário.
Apesar da disponibilidade dele, entre os frequentadores, o ambiente era de revolta com os jornalistas, “principalmente depois da reportagem publicada no Correio da Bahia.” Mas passada a zanga, comentaram o que aconteceria depois de alguns dias: “os caretas em breve esquecerão tudo e nós voltaremos a nossa tranquilidade”.
por João Gabriel Galdea / Correio 24h