A eliminação precoce da Seleção Brasileira, diante da Croácia, na Copa do Mundo do Catar, levantou mais um capítulo do debate a respeito da importância da preparação psicológica no futebol profissional. Na ocasião, o técnico Tite foi alvo de críticas por ter dispensado o trabalho de um psicólogo na delegação da equipe, que teve o hexa adiado por, pelo menos, mais três anos e meio.
O Portal A TARDE entrou em contato com profissionais do futebol e da psicologia para debater a importância da presença de um especialista que cuide da preparação mental e motivacional de atletas que atuam no alto rendimento. Para o doutor Jorge Pagura, presidente da Comissão de Médicos da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), embora não exista uma determinação da entidade sobre o assunto, é recomendado que clubes e seleções ofereçam este suporte aos jogadores.
“A Comissão Médica vê com bons olhos a presença de psicólogo como parte dos Departamento Médicos de clubes e seleções. Trata-se de um suporte acessório importante numa avaliação multidisciplinar que hoje a prática de esporte de alta performance utiliza. A grande maioria dos atletas vem de uma parte da população que passou por muitos problemas antes de atingir uma posição de destaque. Vem com uma carga emocional grande e a psicologia pode ajudar nesses casos”, aponta Pagura.
Para Pagura, apesar da psicologia ser um fator de grande importância na prática esportiva, ela é uma questão isolada, que não determina vencedores ou perdedores dentro das competições. “O desempenho depende de vários fatores. Não acredito que só um fator possa ter qualquer papel na vitória ou derrota de um time ou seleção”, completa o médico.
Com passagens pela Federação Paulista de Futebol (FPF) e pelo Palmeiras, o psicólogo do esporte Gustavo Korte acredita que o cuidado com a saúde mental é tão importante quanto as preocupações físicas. Para o especialista, é necessário treinar a mente para conquistar os melhores resultados.
“Em qualquer ambiente, qualquer atividade esportiva ou esporte de competição, a preparação psicológica é essencial, principalmente no alto rendimento. Se você não tiver um acompanhamento, não só individual, no caso do futebol você precisa fazer um acompanhamento com a equipe. É durante os treinos que você trabalha todas as habilidades que precisa para colocar em prática durante o jogo principal”, comenta.
Atualmente, os grandes clubes do futebol brasileiro já possuem profissionais da psicologia em seus departamentos profissionais. No entanto, este assunto ainda enfrenta uma série de obstáculos, principalmente com os treinadores. Muitas vezes, a saúde mental é colocada em segundo plano por falta de planejamento nos departamentos esportivos das equipes ou por preconceito.
“Para treinamento no Brasil, primeiro é o reconhecimento do profissional de psicologia como parte da equipe, da comissão técnica. É reconhecimento que ele faz parte da equipe do clube, que os jogadores possam contar com ele em todas as situações. O psicólogo do alto rendimento, ele vai estar avaliando todos os fatores que possam estar influenciando na performance de um atleta. Então, se um atleta está sofrendo influências no caso de um ambiente que não está sendo saudável, o psicólogo consegue identificar isso e vai trabalhar esse ambiente para que ele possa render mais”, afirma Korte.
Ex-treinador da dupla Ba-Vi e atualmente técnico do Náutico, Dado Cavalcanti destaca que a intervenção psicológica no futebol precisa ser constante, tendo um profissional contratado pelo clube. No entanto, ele pondera que geralmente o trabalho não é feito dessa forma e afirma também que a falta de conhecimento esportivo de profissionais não especializados pode atrapalhar o desenvolvimento da equipe.
“Eu sou totalmente contrário quanto a intervenção da psicologia clínica no futebol, o que acontece na maioria dos casos. São profissionais que não estão acostumados a trabalhar com o desporto, com o esporte de alto rendimento. Acabam por vezes fazendo intervenções clínicas que culminam apenas no gasto do tempo”, pontua Dado ao A TARDE.
Dado Cavalcanti, de 41 anos, faz parte da nova geração de treinadores brasileiros. Ao longo da carreira, além dos times baianos, ele também passou por Paraná, Coritiba, Ceará, Paysandu e CRB. Preparando o Náutico para a disputa da Série C de 2023, ele ainda não conta com o trabalho de um psicólogo no departamento profissional do clube, mas já fez uma solicitação pessoal à diretoria do Timbu.
“Eu sou adepto a ação da psicologia esportiva. Eu já tive algumas experiências com psicólogos do desporto. Os êxitos que eu obtive foram quando tinha um psicólogo do desporto trabalhando dentro da comissão técnica, participando das reuniões, de pré-treino, de pós-treino, de avaliações de treinamento, de caracterização de programação, de planejamento, de intervenções diretas individuais e ao mesmo tempo coletivas”, destaca.
Com bastante bagagem no meio do futebol, o treinador Geninho, de 74 anos, reconhece a necessidade de um psicólogo no departamento dos clubes. Mesmo assim, ele entende que muitos técnicos temem a interferência desses profissionais dentro do vestiário.
“É fundamental um ótimo relacionamento entre o profissional da psicologia e o treinador. Ele não pode e não deve interferir no trabalho. Muitos técnicos não gostam de trabalhar com psicólogos exatamente por esse motivo, temem a interferência no trabalho. Nesse campo, a confiança é fundamental”, frisa Geninho.
A experiência profissional do especialista em psicologia do esporte Gustavo Korte vai de encontro ao discurso de alguns treinadores. Para ele, é necessário interferir no ambiente para realizar um trabalho de reforço psicológico influente dentro dos clubes.
“Nos locais onde eu trabalhei, muitas vezes o pessoal me criticava que eu era metido e que eu queria falar o que eles não queriam escutar, que realmente poderia estar interferindo. Se você não tiver uma pessoa que vai estar analisando todos os pontos que possam estar influenciando na performance dos atletas, vai ser difícil você ter o reconhecimento de um profissional no futebol brasileiro”, relata.
Evolução lenta, mas futuro promissor
O ex-goleiro e atual gestor de futebol, Emerson Ferretti contou ao Portal A TARDE sobre a experiência com psicólogos esportivos quando atuava como profissional. Ele revelou que não existia um trabalho visando a saúde mental dos atletas, apenas em momentos pontuais da temporada como um fator de motivação, mas não de equilíbrio.
“Não tinha preparação psicológica por parte de um profissional. Durante a minha carreira profissional toda, o máximo que eu tive nos clubes que eu joguei foi atuações bem pontuais. Por exemplo, faltam cinco, seis jogos para acabar o Campeonato Brasileiro, o time corre o risco de rebaixamento. Aí se contrata um profissional para trabalhar a motivação do grupo para aqueles jogos finais para conseguir o objetivo de não ser rebaixado”, conta.
Ferretti foi revelado pelas categorias de base do Grêmio, mas se tornou ídolo com a camisa do Bahia, conquistando o bicampeonato da Copa do Nordeste, em 2001 e 2002. Antes de encerrar no futebol pelo Vitória em 2007, ele também passou por Flamengo, América-RJ, América-RN, Ituano, Bragantino e Juventude. Segundo o ex-goleiro, nenhum clube em seus 16 anos de carreira ofereceu suporte psicológico aos jogadores.
“Essa parte de psicologia quase sempre ficava sob a responsabilidade dos treinadores, que antigamente não tinham uma equipe de trabalho tão grande como têm hoje. Eles ficavam responsáveis pela parte técnica, tática e também por essa conversa junto aos jogadores, quase sempre de uma forma coletiva”, diz o ex-arqueiro.
Emerson aponta para a necessidade que os goleiros têm de cuidar da saúde mental. Por atuar numa zona decisiva do jogo, a pressão pode ser um fator fundamental para a determinação de um resultado. Falhas e atuações ruins devem ser trabalhadas não só física e taticamente, mas também de forma psicológica. Para ele, fatores como tamanho da torcida e análises injustas da imprensa podem atrapalhar o desempenho profissional e causar problemas pessoais nos atletas.
“Goleiro é uma posição mais delicada, pelo fato do erro marcar muito mais. O erro do goleiro quase sempre se transforma em gol, e o gol pode ser um fator determinante em uma derrota. Todo atleta precisa desse acompanhamento psicológico porque sofre uma pressão muito grande toda vez que entra em campo. Existe uma cobrança da torcida, ainda mais quando são clubes com torcida grande. A pressão é sempre por resultado, por desempenho. Também a gente é avaliado o tempo todo por uma imprensa dita especializada, que avalia o seu desempenho. Então, a gente é o tempo todo cobrado e avaliado de uma forma muitas vezes injusta, cruel e exacerbada”, comenta.
Ferretti observa também que existe um caminho positivo para a saúde mental dos atletas de futebol. Apesar da evolução lenta, outros setores do esporte estão contribuindo com o debate a respeito dos cuidados psicológicos necessários para lidar com o alto rendimento. Nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, a ginasta Simone Biles surpreendeu ao afirmar que não iria participar da competição para “colocar a saúde mental como prioridade”.
“Ganhou muito mais notoriedade nos últimos tempos, principalmente pela manifestação de alguns atletas de outras modalidades, que se afastaram por um período e foram corajosos em dar entrevistas e explicar que não estavam bem, que precisavam cuidar da sua saúde mental. Isso começou a jogar luz sobre o assunto”, afirma Ferretti.
Saúde mental nas categorias de base
O futebol brasileiro atua como um importante fator de transformação social. Desde as categorias de base, crianças e adolescentes sonham com um futuro melhor por influência do esporte. Em preparação à disputa do Campeonato Baiano de 2023, a psicóloga do Bahia de Feira, Letícia Bispo, afirma que o cuidado com a saúde mental dos jovens serve para contribuir com o crescimento e na conciliação do indivíduo com o atleta.
“É muita responsabilidade para um adolescente e por isso a importância do acompanhamento psicológico, buscando o gerenciamento da concentração, regulação da ansiedade, motivação, metas, foco, atenção e cobrança pelos resultados. São jovens carentes de recursos que em sua maioria não sonham apenas para serem os melhores do mundo, mas proporcionar às suas famílias moradia, comida e condições dignas para se viver”, aponta.
Gustavo Korte revela que o trabalho psicológico nas categorias de base tem a responsabilidade de preparar a parte emocional e afetiva dos jogadores. Para o especialista, é importante controlar o entorno dos atletas jovens para manter o foco e a motivação nos melhores resultados.
“O trabalho na base é essencial, tão importante quanto no profissional. No profissional tudo que você tinha que preparar na parte física, técnica, tática do jogador, você já preparou, mas você precisa ter a parte emocional, a emocional afetiva, cognitiva, é a que vai determinar o sucesso e a aplicação de tudo que ele aprendeu na base e tudo mais”, acrescenta Korte.
No futebol do Nordeste, clubes de relevância contam com profissionais da psicologia que atendem também as categorias de base. A reportagem apurou que equipes como Bahia, Vitória e Fortaleza cuidam da saúde mental dos seus jovens atletas, assim como o Bahia de Feira. A medida é fundamental para a formação de novos jogadores e pode contribuir para um futuro mais vencedor e equilibrado do futebol brasileiro. (At)