Uma brincadeira de criança mudou para sempre a história do São João de uma das cidades mais tradicionais na realização da festa na Bahia. Era final da década de 1960 e os pimentinhas moravam na Rua Landulfo Alves, nº 168. Essa era a casa do músico Atanagildo Tourinho, um membro da Filarmônica de Santo Antônio de Jesus, no recôncavo baiano, e figura conhecida na cidade. Um dia, um dos filhos dele resolveu aprender a tocar sanfona e aí tudo mudou.
Até os anos 1960, as festas juninas de Santo Antônio de Jesus eram muito similares às de outras cidades pequenas do interior. As famílias construíam fogueira, enfeitavam a casa com bandeirolas e montavam uma mesa com as iguarias típicas do período, como milho, amendoim, bolo de aipim, canjica e tudo mais que dá água na boca. A interação era somente entre os vizinhos mais chegados, que visitavam uns as casas dos outros.
Gildo Tourinho tinha 10 filhos, oito meninos e duas meninas, e todos os anos os mais velhos ajudavam o pai a recolher lenha no quintal para construir as fogueiras. Eram duas, uma para o dia 23 e outra para o dia 24 de junho. E os mais novos ajudavam a mãe a fazer as bandeirolas, balões, fogueirinhas e outros objetos de decoração. Entre 1966 e 1967, Rai Tourinho, que naquela altura ainda era conhecido como Raimundo, resolveu experimentar a sanfona do pai.
“Eu tinha 13 ou 14 anos, e consegui desenvolver rápido alguns versos, como ‘a fogueira está queimando, em homenagem a São João…’. Meus irmãos e uns amigos entraram na brincadeira. Um arrumou uma zabumba, outro trouxe um triângulo e a gente saiu pela rua cantando e tocando. As pessoas adoraram porque naquele tempo não tinha banda, então, a gente animava a festa, e convidavam a gente para entrar e comer alguma coisa”, contou.
Nos anos seguintes, a brincadeira continuou e mais gente resolveu participar. Até seu Gildo entrou na farra. Ele carregava um barril com licor para oferecer ao povo que acompanhava a procissão, e a festa foi avançando para outras ruas do bairro. Rai aprendeu outras músicas e contou que acontecia situações engraçadas.
“A gente cantava muito uma música que dizia assim ‘Oh dona da casa por Nossa Senhora/Dai-me o que beber senão eu vou me embora’. E os donos da casa corriam para oferecer licor porque achavam que a gente estava cobrando. Eram outros tempos”, brincou.
Na medida em que os Tourinhos foram ficando mais velhos, as festas também terminavam cada vez mais tarde. Geralmente, o grupo saia da Rua Landulfo Alves por volta das 19h e muitas vezes só retornava de madrugada. Yuri Pithon morava na Praça Padre Mateus, também no Centro da cidade, e lembra bem dessa época. “Era bom demais. A gente ia de casa em casa, catando e tocando. E as pessoas ofereciam para a gente comida e bebida”.
Ele gostou tanto que resolveu seguir a carreira de músico e se tornou sanfoneiro. “São João é vida, é a marca do Nordeste e o que temos para oferecer de melhor para o Brasil e para o mundo”, disse o artista, que também lamentou o fato da pandemia de covid-19 ter estragado a festa no ano passado e este ano.
Filhos de Seu Gildo começaram tradição de brindeira (Foto: Acervo Pessoal) |
Da quadrilha ao palco
A procissão que surgiu nas ruas no final da década de 1960, e que se intensificou nos anos 1970, não conseguiu acabar com uma tradição: as quadrilhas juninas. Organizadas pelas escolas, elas aconteciam nos pátios dos colégios e envolviam toda a comunidade. Os preparativos começavam um mês antes, com ensaios no intervalo das aulas.
As mães faziam os vestidos de chita das meninas e colavam remendos nas bermudas dos meninos. Pintavam costelas e bigodes neles, e faziam Maria Chiquinha nelas. A divisão dos pares era feita por altura. E, às vezes, acontecia atritos, como conta Rai Tourinho.
“Eu era apaixonadinho por uma menina chamada Fátima. A gente devia ter uns 12 anos, e ela era um pouco mais alta que eu. A professora colocou a gente como par, e eu fiquei muito feliz, mas depois ela mandou trocar para ajustar a altura. Eu chorei e ela desistiu”, conta, saudoso.
Com o tempo, a violência e a insegurança mudaram as regras da festa em Santo Antônio de Jesus. Depois de episódios de furtos, as famílias passaram a ter medo de receber desconhecidos durante o São João e no final dos anos 1980 essa tradição já estava quase perdida. Na década seguinte, vários municípios começaram a montar palcos, contratar bandas e organizar uma festa nos moldes das que existem atualmente.
Santo Antônio de Jesus seguiu a onda e na década de 1990 o São João saiu das casas e foi parar no meio da praça. Em 2019, última edição antes da pandemia, a cidade, que tem 100 mil habitantes nativos e mais 20 mil flutuantes – pessoas que moram em municípios vizinhos, mas trabalham e estudam em SAJ – recebeu 100 mil visitantes. Entre as atrações, nomes conhecidos como Simone e Simaria e os cantores Wesley Safadão, Solange Almeida e Danniel Vieira.
Para Ana Celeste Lessa, 53 anos, o São João de SAJ significa incremento na renda. Ela faz bolos e salgados, e contou que não consegue descansar no período junino devido a quantidade de pedidos, mas contou que sente falta dos velhos tempos.
“A gente perguntava para as pessoas ‘São João passou por aí?’, e quando a resposta era que ‘sim’ a gente podia entrar para comer e beber. Minha mãe tinha o hábito de fazer florzinhas de papel que a gente chama de ‘sorte’. Dentro delas tinha um dizer, como ‘você vai encontrar seu futuro marido hoje’, e o pessoal adorava. Agora é só lembrança”.
Rai Tourinho aprendeu sanfona para animar as festas (Foto: Acervo Pessoal) |
Festas particulares
Santo Antonio sempre teve festas particulares de São João, mas os modelos eram diferentes dos atuais. O médico João Apostolo, 63, conta que na década de 1980 organizava eventos com os amigos. “Era uma festa entre amigos e a casa era a base da festa. Não era a praça. Tudo feito em cima da hora. A improvisação comandava”, lembra.
O cineasta Tau Tourinho, que há 35 anos estuda a história da cidade e também é filho de Seu Gildo, diz que clubes e moradores mais abastados sempre fizeram arraiá particular. Ele lançou um curta sobre a fundação de SAJ. Está no YouTube com o nome ‘Marco Zero Santo Antônio de Jesus’.
“Os clubes sociais faziam algumas festas particulares, mas os festivais de quadrilha que eles organizavam eram gratuitos. No final da década de 1980, começaram a surgir os hotéis-fazenda que faziam eventos como prévia e ressaca do São João. Essas festas existem até hoje e chegam a receber 700 pessoas”.
A mais famosa é o Forro do Lago, que arrasta uma multidão e já levou nomes como Gusttavo Lima, Wesley Safadão, Xand Avião, Dorginal Dantas e Saia Rodada.
“Existia uma micareta que acontecia em maio. Nos anos 1990, a prefeitura e a associação comercial acabaram com a micareta e instituíram o São João imitando Amargosa, que também havia passado pelo processo de sair casa em casa e, depois, se profissionalizado. Santo Antônio pega carona e passa a fazer também esse São João que conhecemos, que é mais grandioso”, contou Tau.
Foram necessários 30 anos para a festa se reinventar e já faz 30 anos desde a última mudança. Os moradores estão curiosos para saber se a pandemia vai provocar efeitos sobre o evento, mas, enquanto 2022 não chega, o jeito é aproveitar do jeito que dá.
Yuri Pithon também virou músico por causa das festas em SAJ(Foto: Acervo Pessoal) |