São João proibidão: Espadeiros baianos garantem que guerra continua

Foto: Ilustração: Pablo Santos

Para Guguinha, soltar espada é tão emocionante e perigoso quanto acompanhar o arrastão de Kannário no Carnaval. Uma mistura de adrenalina, devoção e risco de se queimar  ou levar um soco, de graça, na cara. Contudo, ambos são indispensáveis na sua vida e, se depender dele, guerra de espada e Kannário nunca devem acabar. “Não é só da minha vida, não. É de todo o bairro de Periperi, que já tem esta tradição de soltar espada todo ano. Não adianta. Vai ter guerra de espada, proibida ou não”, avisa Guguinha, 41 anos. Desde 2017 a espada, que já passava por um processo de criminalização, se tornou proibida na Bahia. Mesmo assim, seja em Salvador, Cruz das Almas ou Senhor do Bonfim, os espadeiros garantem que não vão deixar a tradição morrer.

Em cada rua de Periperi é comum ver a guerra acontecer quando não há a presença da Polícia Militar. Tradicionalmente, ela ocorre na rua da Urbis, até o Gás do Rato, como lembra o próprio Guguinha, que nasceu no local e hoje mora em Itapuã. “Se eu tivesse dinheiro? Comprava umas 20 espadas e soltava mesmo. Ainda é fácil conseguir. O que é pior? Soltar espada ou andar lado a lado com o trio do Kannário? Todo mundo que está ali sabe que o pau vai quebrar, que você corre o risco de tomar um soco no olho. Mesmo assim gostamos da put****. É a mesma adrenalina”, disse.

Em Periperi, Subúrbio de Salvador, a guerra de espada, mesmo proibida, acontece. Para outro morador do bairro, que pediu para não se identificar, o problema nem é a espada. “Era melhor proibirem os carros com som. Hoje eles misturam tudo, espada e pagodão rolando solto, soltam andando de moto, horrível. As espadas sempre foram massa, eu sempre soltei e acho que este ano soltarei novamente, mas no sítio de meu irmão. Não solto mais no bairro, pois não estou a fim de apanhar da polícia de graça, nem ouvir paredão”, alega o morador. 

Geralmente, a guerra de espada no bairro acontece no São Pedro, uma semana após o São João. Moradores contam que ocorre há pelo menos 40 anos. Contudo, pelo interior do estado, soltar o artefato se tornou cultura popular há mais de um século. É impossível falar da cidade de Senhor do Bonfim sem mencionar São João e espada, duas coisas indivisíveis na história do município, que fica a 384 km de Salvador.

Os bonfinenses se orgulham e garantem ter a melhor festa junina do estado, mas a tradição de soltar espada é parte intrínseca desta alcunha. “Eu fico louco só de saber que vamos poder correr das espadas, ir para o Sfrega [uma festa particular], dançar muito no espaço Gonzagão e sair correndo atrás da Alvorada. Vem São João, estávamos com tantas saudades!”, disse um morador de Bonfim, no canal oficial da festa no Instagram. Percebeu, né? A espada veio antes de qualquer coisa, inclusive da própria festa.

Secular
Presidente da Associação Cultural dos Espadeiros de Senhor do Bonfim (Acesb), Rodrigo Wanderley luta na justiça para que a tradição volte a ser liberada, pois quebrar um costume de mais de 100 anos não é fácil. Para ele, é como tirar um pedaço da história da cidade. “Não tenho dúvida nenhuma que Bonfim terá guerra de espada e nunca vai acabar. Não estou aqui dizendo que apoio ou não soltarem, apenas digo que não se controla algo que está na cultura do lugar”, alega Wanderley.

O presidente da Acesb faz um comparativo histórico entre a proibição e a cultura da cidade. “Samba já foi proibido. Candomblé e capoeira eram crimes. Acabaram? A espada não vai acabar e esta proibição só fortalece nossa luta pelo reconhecimento cultural. Conheço moradores da cidade que não soltavam espada, mas abraçaram a causa”, completa.

Artista plástico da terra, Pablo Santos não soltava espadas com a mesma frequência dos amigos, mas abraçou a causa. É dele, inclusive, a arte que ilustra a matéria. “É difícil proibir algo que aprendemos de nossos ancestrais. Cada cidade tem suas particularidades e precisamos respeitar. Espada sempre foi um símbolo da cultura popular de Bonfim, mesmo para quem não solta. Como vamos admitir que a justiça, que nem sabe de nossos costumes, vem e diz que não podemos mais fazer aquilo que é tradição? Impensável”, disse Pablo.

Discriminação
Em Cruz, a guerra é mais intensa que em Bonfim, e dura o mês todo. Historiador e especialista sobre guerras de espada, Filipe Arnaldo Cezarinho acredita que a proibição vai além do simples fato de soltar um artefato feito de bambu e recheado de pólvora, barro e malha de ferro. É uma questão discriminatória.

“Há fatores explícitos e uma mania de estigmatizar as práticas populares, além de uma  lógica racista no que tange à guerra de espadas. Se você observar o Recôncavo, é uma região de contingente negro. Este contingente é que solta a espada. Para o Ministério Público, esta manifestação popular é uma ofensa ao patrimônio público, à racionalidade e às vidas humanas. É um discurso colonialista do homem europeu branco. Estas cabeças não se dão conta que nossa realidade cruzalmense é diferente do mundo deles”.

O início da criminalização da espada se deu a partir de 2003, com o estatuto do desarmamento. Segundo o artigo 16 desta lei, é proibido ter posse, deter, guardar ou receber qualquer arma de fogo sem autorização ou determinação legal. E, curiosamente, a espada passou a ser entendida como arma de fogo, pois possui pólvora, de uso e controle restrito. Em 2017,  o Ministério Público da Bahia (MP-BA) passou a proibir a prática. No último São João, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF)  acatou a decisão, mantendo a criminalização.

 Para o MP-BA, o maior problema é justamente a falta de controle na fabricação. “O que acontece aqui [em Cruz das Almas] é que toda produção de espada é clandestina. A gente não tem nenhum controle da produção, tampouco da qualidade do que é produzido. Para se fazer espada, é preciso a chamada pólvora mecânica, de baixa intensidade, mas um explosivo controlado pelo Exército”, disse o promotor de justiça de Cruz, José Reis Neto.

Segundo o promotor, a fabricação clandestina pode trazer perigos reais, mas há caminhos para a questão. “Eu acredito que o grande problema que temos hoje é na produção. Uma vez que a gente tem um produto regular e com o devido controle, a regulamentação da queima de espada não seria um grande problema. Talvez este seja o caminho”, completa o promotor.

Após dois anos sem São João, quase todas as tradições típicas da festa estarão de volta, menos a espada. Não de forma regular. “Vou soltar minha zorra. Nunca joguei espada em ninguém. Quem se queima é curioso que tenta fugir da espada e ela corre atrás. Não se corre da espada! Aqui em Cruz tem um ditado: ‘Com nossas espadas de luz, vamos descartar os exus das encruzilhadas de Cruz’. Soltar espada é uma missão divina”, disse um morador de Cruz, que pediu anonimato. No último dia 13, um garoto  foi atingido por uma espada em Cruz, perdendo 11 dentes. Pelo visto, a tradição ainda vai permanecer com status de proibidão por mais tempo. Mesmo assim, é possível saber onde acontece pelas redes sociais. Basta ir na pesquisa do Instagram e colocar “espadeiros”. Diversos perfis mostram pessoas soltando espada todos os dias neste mês de junho. Em Salvador, a página @espada_periperi posta diariamente a guerra no bairro. 

Por motivo do recente aumento de casos de covid-19, o CORREIO volta a chamar a atenção para a necessidade da vacinação completa (de acordo com cada faixa etária) contra o novo coronavírus. Além disso, sugere o uso de máscaras apropriadas, a higienização das mãos e o cuidado com aglomerações.

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