Texto originalmente publicado no Jornal da Metropole em 10 de fevereiro de 2022
O assassinato brutal do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, morto a pauladas no Rio de Janeiro, jogou luz sobre como são tratados os refugiados no Brasil. Apesar do país receber muita imigração do tipo, não há políticas públicas estruturadas de acolhimento.
“É o famoso ‘seja bem vindo, mas se vire aí’”, afirma Rafaela Ludolf, coordenadora do Centro de Serviços ao Migrante (CSM), projeto de extensão da Unifacs, em Salvador. “Na Bahia, em modo geral, não há políticas públicas estaduais para este grupo e poucos municípios têm atuado para fazer alguma coisa”, completa.
É o que confirmam as venezuelanas Nadiveth Dino, de 39 anos, e Harlet Orellan, de 41. Para fugir da crise econômica no país, elas desembarcaram no Brasil, em 2018, em Roraima. Em janeiro de 2020, pouco antes da pandemia, chegaram em Salvador, com a ajuda de uma igreja.
“Fomos morar em um lugar precário, na Ilha de Maré, um quilombo. Ficamos desempregadas e lá não tinha possibilidade de crescer. Algumas pessoas compartilharam um quarto, mas não era viável”, conta Nadiveth. Depois de passar por muitos perrengues, elas finalmente conseguiram se mudar para um apartamento, em Cajazeiras II.
Sem oportunidades de emprego, resolveram empreender juntas e criaram um negócio informal, chamado de “As meninas venezuelanas”, oferecendo o serviço de pintura de parede.
“Por muito tempo não deu certo porque a pintura é por indicação e a gente não conhecia ninguém. Chegamos aqui de paraquedas. Não conseguimos emprego, foi muito difícil. Pegávamos um serviço e ficávamos paradas dois meses”, revela a venezuelana, formada em pedagogia. “Mas hoje já nos conhecem e nos recomendam”, diz, vislumbrando o sucesso.
Conforme dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, entre 2011 e 2020, 265.729 imigrantes solicitaram refúgio no país, sendo 28.899 no último ano.
Neste período foram reconhecidas 94,3% do total de pessoas refugiadas. Estes números, porém, são pífios em relação à realidade, revela a professora de Relações Internacionais, Rafaela Ludolf. Isso ocorre porque nacionais de países integrantes ou associados ao Mercosul podem solicitar o visto de residência no Brasil, mas vêm nas mesmas condições de refugiados.
No país, ainda de acordo com o levantamento do Conare, a maioria dos refugiados vêm da Venezuela, nação que faz fronteira ao norte com o Brasil, representando 96,6% do total. Em seguida, estão os sírios, sendo 1,9%.
Por conta própria
O sírio Anas Alsmman, de 34 anos, encontrou refúgio em Salvador em 2016. Auxiliado pelo projeto da Unifacs, ele conseguiu, depois de muita dificuldade, realizar o sonho de abrir o seu próprio negócio. Hoje, ele tem registro de residência no Brasil e conseguiu trazer parte da sua família por Autorização de Reunião Familiar, com exceção do seu pai.
“Eu saí de lá porque eu estava procurando trabalho. A história é longa, mas eu estava na África antes de vir. Eu estava procurando um lugar para morar e abrir o meu negócio de cosméticos e maquiagem. Em 2016, o Brasil era o maior fabricante e vendedor. Depois que cheguei aqui, comecei o processo com Rafaela [coordenadora do CSM] para ficar no Brasil”, explica Anas.
Na condição de refugiado, ele conta que encontrou muito mais dificuldades para conseguir abrir a sua empresa. “Como eu estava ainda com o processo de refúgio, não liberaram o meu CNPJ, aí paguei tudo de novo: taxa da prefeitura, da Receita Federal… Recusaram de novo. Hoje tenho RNE [Registro Nacional de Estrangeiros] e já consegui o CNPJ. Também foi muito complicado abrir uma conta bancária, cada agência me dava uma informação diferente”, relembra.
Para Mariângela Nascimento, coordenadora do Núcleo de Apoio aos Migrantes e Refugiados (Namir), projeto de extensão da Ufba, a falta de amparo do poder público relega os refugiados à própria sorte.
“Geralmente, eles vivem em situação precária e extremamente vulneráveis aqui. Muitos estão chegando através da interiorização que o governo federal está fazendo, mas eles são mandados para as cidades do interior dos estados e, de forma precária, conseguem um emprego. Depois de três meses, ficam desempregados”, afirma.
Em Salvador, os refugiados estão bem dispersos nos bairros, por isso, ainda não há um levantamento de quantos vivem atualmente na cidade. Já em Lauro de Freitas, um mapeamento indica a presença de cerca de 500 venezuelanos. A maior parte em localidades como Areia Branca e Jambeiro, zona rural do município, e com histórico de violência e brigas de facções criminosas.
Em vista disso, iniciativas da sociedade civil são a única fonte de apoio aos imigrantes. Estes grupos ajudam com cursos de português, na emissão de documentos e, principalmente, como um centro de referência. “A pessoa abandonou basicamente a sua vida, a sua formação, trabalho, tudo que fazia, e se despiu completamente para vir aqui sem conhecer ninguém, sem bases, informações, muitas vezes não fala o idioma. A gente se torna esse espaço de referência”, explica Rafaela Ludolf, coordenadora do projeto.
Outro projeto, o Namir-Ufba, reconhecido como o maior de extensão universitária da Bahia, tem como objetivo principal cobrar ao poder público ações de acolhimento. Organizado em quatro comissões (direitos humanos, educação, trabalho e saúde), o núcleo elaborou e apresentou aos governos federal e estadual, além de prefeituras, um programa de políticas públicas municipais para a migração na Bahia. Ele prevê, entre outras coisas, capacitações para secretarias de áreas sociais saberem lidar com refugiados e migrantes.
“O poder público desconhece essa realidade”, crava Mariângela, que coordena o Namir-Ufba. “Nosso papel é justamente de promover essa interação do poder público para que assumam a responsabilidade. A lei exige isso”, indica.
A Lei de Imigração, 13.445/2017, prevê direitos aos migrantes no território brasileiro, além da inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade. Segundo Mariângela as ações das autoridades são urgentes para evitar que tragédias como a de Moïse se repitam.
“Daqui a pouco vai acontecer na Bahia o que aconteceu no Rio. Não é o primeiro, nem o segundo assasinato de refugiados no Brasil. A vida é precária e não há amparo”, lamenta.
Direitos dos refugiados
Os refugiados devem usufruir, pelo menos, dos mesmos direitos e da mesma assistência básica que qualquer outro estrangeiro residindo legalmente no país, incluindo liberdade de expressão e de movimento, e proteção contra tortura e tratamento degradante.
De igual modo, os direitos econômicos e sociais que se aplicam aos refugiados são os mesmos que se aplicam a outros indivíduos. Pessoas refugiadas devem ter acesso à assistência médica. Pessoas refugiadas adultas devem ter direito a trabalhar. Nenhuma criança refugiada deve ser privada de escolaridade
Ranking de países que mais mandam refugiados para o Brasil:
- Venezuela 153.050
- Haiti 38.686
- Cuba 11.550
- China 5.437
- Angola 5.247
- Bangladesh 5.768
- Ningéria 3.347
- Senegal 8.969
- Colômbia 1.857
- Síria 4.992
Outros países 26.826
Total: 265.729
Fonte: Elaborado pelo OBMigra, a partir dos dados da Polícia Federal, Solicitações de reconhecimento da condição de refugiado. (Metro 1)