Uso de algemas em deportados brasileiros cria impasse entre governo Bolsonaro e EUA

Foto: Reprodução / Hora do Povo

O uso de algemas em cidadãos brasileiros deportados dos Estados Unidos criou um impasse entre o governo Jair Bolsonaro (PL) e o do americano Joe Biden. O Itamaraty vem fazendo, desde o final do ano passado, apelos para o fim da prática e a melhoria no tratamento a pessoas enviadas de volta ao Brasil, mas tem sido ignorado. 

Há alguns meses, menores de idade também passaram a ser deportados. 

Segundo depoimentos obtidos pela reportagem, homens e mulheres foram algemados na frente dos filhos em um voo que chegou ao Brasil no dia 26 de janeiro. Alguns passageiros afirmaram à reportagem ter sofrido maus-tratos, e autoridades envolvidas no trâmite confirmaram que receberam relatos semelhantes. 

Apesar de o pedido para abolir o uso de algemas valer para todos os deportados, de acordo com pessoas envolvidas nessas operações, havia o entendimento de que integrantes de núcleos familiares, em especial, não passariam por essa situação. 

Por meio de nota, o Itamaraty disse que a situação é vista com “grande preocupação”. Segundo a pasta, o ministro Carlos França falou por telefone com o secretário de Estado americano, Antony Blinken, no último dia 30 de janeiro para tratar do assunto. 

Questionado pela reportagem sobre o uso de algemas em voo com crianças e adolescentes, o órgão disse que tomou conhecimento da ocorrência do fato. “O secretário Blinken respondeu que os protocolos de segurança nos voos não competem ao Departamento de Estado, mas demonstrou atenção ao pedido brasileiro. Informou, ainda, que seriam envidados esforços para que, em futuros voos de deportação, compostos unicamente por grupos familiares, não haja uso de algemas”, afirmou a pasta. 

Em setembro, como mostrou o jornal Folha de S.Paulo, o governo brasileiro havia pedido o fim do uso de algemas para os EUA como parte da negociação para o aumento na frequência desses voos para o Brasil, diante do maior volume de detidos na fronteira americana com o México. 

Esses brasileiros são mandados de volta após tentativas de entrar nos EUA de maneira irregular. Por si só, esse tipo de migração não é considerada um crime pela lei brasileira, mas promovê-la a fim de obter lucro, sim –desde 2017. O lado brasileiro tem insistido que a maioria dos cidadãos que retornam não possui condenação criminal prévia e não representa ameaça à segurança da aeronave. 

O assunto virou um impasse porque as autoridades americanas têm dito às brasileiras que entendem a preocupação, mas que não encontram uma forma de resolver a questão. De acordo com informações repassadas ao Itamaraty, a utilização de algemas é uma praxe dos EUA em voos do tipo para outros países e, portanto, seria difícil abrir uma exceção. Alternativas estão sendo estudadas. 

Deportado no dia 26 de janeiro, o vigilante Everton Júnior Liberato, 36, estava acompanhado da esposa e do filho de 7 anos no voo com com 211 brasileiros vindos dos EUA, 90 dos quais menores de idade –incluindo crianças de até 10 anos. 

Ele conta que viajou em 5 de janeiro, com a esperança de conseguir melhorar de vida, e que foi separado da família logo ao entrar em solo americano, ficando ao menos dez dias sem ter notícias da mulher e do filho. No reencontro, relatou ter passado pelo constrangimento de ter sido algemado na frente da criança. 

“Amarraram corrente na perna, na cintura, nas mãos. Meu filho me perguntou o que estavam fazendo comigo, chorou muito ao me ver algemado. Ele perguntava para eles [autoridades americanas] o que estavam fazendo e eles só riam”, afirma à reportagem. 

Segundo Liberato, além das condições a que ele próprio foi submetido, classificadas pelo vigilante como humilhantes, seu filho ainda passou mal e não recebeu assistência. Ele conta que todos os pais que estavam no seu voo foram algemados, exceto quando a criança viajou acompanhada de apenas um genitor –houve casos de mães algemadas também. 

A bacharel em direito Geisiane Vieira, 33, disse que o marido passou pela mesma situação ao lado do filho mais novo. “Não há o mínimo de dignidade. Faltam remédios para os adultos e para as crianças, eles não nos escutam, há maus-tratos”, diz. Geisiane havia chegado aos EUA no dia 16 de janeiro, com o marido e os filhos de 12 e 15 anos. 

Histórias de abusos são recorrentes entre migrantes mantidos em centros de detenção após verem frustrada a passagem pela fronteira com o México. Comida ruim e falta de medicamentos e de itens de higiene são reclamações comuns. 

A intenção das famílias era tentar entrar de forma irregular em solo americano pelo sistema chamado de “cai cai”. Como crianças não podem permanecer sozinhas durante os procedimentos de repatriação ao Brasil ou aceitação pelo governo americano, por esse método os adultos ingressam nos EUA acompanhados de um parente menor de idade e se entregam às autoridades, o que lhes permite responder ao processo em liberdade. 

Contrabandistas e “coiotes” viram essa regra como uma oportunidade de negócio. 

Procurada, a Embaixada dos EUA no Brasil não se manifestou até a conclusão deste texto. 

A quantidade de crianças e adolescentes enviadas de volta ao país no voo de 26 de janeiro foi inédita nesse tipo de operação. O avião com os 211 brasileiros partiu do estado do Arizona e chegou ao Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins (MG), por volta das 13h30. 

O autônomo Ezequiel Santos da Silva, 27, estava entre eles, depois de ter ido tentar a vida nos EUA com a esposa e os filhos de 2 e 5 anos. A intenção era trabalhar para juntar dinheiro e comprar uma casa no Brasil. Ele conta que viveu dias difíceis separado da família e foi mais um que precisou ser algemado para voltar ao Brasil. 

“Fui algemado na frente dos filhos, minha menina se desesperou, chorou. Eu achei muito ruim, sou pai de família, não sou bandido. Mas eles ficam falando que a gente entrou ilegalmente no país deles.” 

O delegado da Polícia Federal Daniel Fantini disse que a corporação analisa os depoimentos colhidos. Há o interesse em identificar quadrilhas que promovem essa travessia irregular, apurando também as circunstâncias em que as crianças deixaram o território brasileiro e as condições a que foram submetidas no processo de entrada nos EUA. 

A PF investiga se há nesse grupo pessoas que se passam por pais de menores, com documentos falsos, para tentar entrar nos EUA pelo “cai cai”. “Existem indícios de casamentos e uniões estáveis fictícias”, ressalta Fantini. 

Como a Folha de S.Paulo mostrou em uma série de reportagens em dezembro, contrabandistas que atuam para promover a migração irregular do México para os EUA têm lucrado com o aluguel de crianças brasileiras. 

Além de policiais federais, representantes dos juizados da Infância e da Juventude de Belo Horizonte e de Pedro Leopoldo, cidade na região metropolitana da capital mineira, acompanharam o desembarque.

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