O que sete meses representam ao longo de uma vida inteira? Para a maioria das pessoas, muito pouco. Para Adailson Pereira Moura, no entanto, o período curto foi suficiente para deixar marcas eternas. “Hoje eu sou um homem de 73 anos que dou trabalho para levantar da cama. Tenho cansaço, não durmo direito. Mas têm outros muito piores do que eu, que estão presos na cama”, diz. Ao longo dos meses que trabalhou na antiga Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), em Santo Amaro. Adailson se tornou uma das vítimas da exposição irresponsável de chumbo na cidade.
Quando um novo empreendimento chega em um município pequeno, a promessa de geração de renda logo atrai moradores que querem melhorar de vida. É inevitável. Mas boa parte dos ex-funcionários da mineradora que se instalou no Recôncavo, em 1960, gostaria de voltar no tempo e nunca ter pisado dentro da empresa.
Ao longo de anos de exposição a metais pesados, os trabalhadores foram os mais atingidos e ainda sofrem com as sequelas. Mesmo com decisões favoráveis na Justiça, a maioria não recebeu indenizações significativas. Por isso, um grupo de pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Ufba) ingressou com uma medida cautelar em favor das vítimas na Comissão Interamericana de Direitos da Humanos (CIDH) na última terça-feira (21).
Além de ter trabalhado na indústria por sete meses, Adailson Pereira morava em frente à antiga Companhia Brasileira de Chumbo. “Eu já entrei para trabalhar contaminado”, lamenta. Estudos comprovaram que o ex-funcionário é um dos contaminados com excesso de chumbo no sangue.
A luta pela indenização aos colegas que trabalharam na mineradora e seus parentes tornaram Adailson, conhecido como Pelé, um especialista no assunto. O escritório da Associação das Vítimas da Contaminação por Chumbo, Cádmio, Mercúrio e Outros Elementos Químicos (Avicca), a qual ele preside, guarda um verdadeiro dossiê com informações sobre o caso.
Mais de 20 anos após o fechamento da fábrica, em 2014, a Justiça Federal condenou a mineradora a pagar 10% do faturamento bruto da empresa para custear um centro de saúde destinado às vítimas – o que nunca foi feito. A empresa, por outro lado, usou uma tática de guerra conhecida, mas que se mostrou eficiente: dividir para conquistar.
Através de acordos individuais, ex-funcionários receberam indenizações irrisórias, seja pelo desconhecimento dos direitos, na época, ou pela falta de recursos para recorrer. Gilson da Anunciação, 54, que trabalhou na mineradora por cinco anos, recebeu R$1,8 mil da empresa, em 2008.
“Eu sinto que fui um idiota por ter aceitado. Na verdade, eu fui praticamente obrigado a aceitar esse acordo. Não houve empenho do advogado em me ajudar, na época, e a própria juíza disse que era melhor um passarinho nas mãos do que dois voando”, relembra Gilson. O trabalho na indústria foi seu primeiro emprego de carteira assinada. Depois do fechamento da fábrica, ele viu amigos morrerem vítimas da contaminação sem terem recebido um centavo da empresa.
“Sinto dores nas pernas, formigamento, cansaço. Quando faço caminhadas, sinto dores. Mas existem pessoas com sequelas que nem saem da cama”, diz Gilson. Os danos à saúde não impediram que ele continuasse trabalhando. “Seria justo que nós tivéssemos algum auxílio ou aposentadoria. Não tem dinheiro que traga nossa saúde de volta. Eu tive que continuar trabalhando para manter minha família, mas muitos outros não conseguiram”, diz o ex-funcionário, que é balconista de uma loja de materiais de construção.
Adailson Pereira, presidente da associação que representa as vítimas, conta que os valores pagos aos trabalhadores sequer foram suficientes para pagar os custos dos enterros de alguns deles. “Tiveram pessoas que receberam R$ 2 mil, que não deu para pagar o funeral, que foi R$ 4 mil. A empresa chegou a oferecer R$ 500 às viúvas dos ex-funcionários. Isso é uma vergonha”, diz. A reportagem não conseguiu contatar a Plumbum Mineração e Metalurgia.
Um documento de 2001, assinado pela então promotora Adriana Imbassahy, aponta para a existência de 729 ações indenizatórias de ex-funcionários em trâmite na Justiça do Trabalho local. Outros 181 acordos tinham sido firmados entre as partes até aquele ano, sendo 165 deles no valor R$ 2.200 e outros 15 acordos no valor de R$500.
Contaminação
Em 2019, uma reportagem investigativa do Correio da Bahia recolheu amostras de um canteiro de obra da prefeitura de Santo Amaro e comprovou: o chumbo continua contaminando a população. Um relatório expedido em julho daquele ano, a pedido do jornal, detectou a presença de 16.700 mg/kg de chumbo, o que supera em 5.566% o Valor Orientador de Qualidade do Solo, que é de 300 mg/kg.
“Existe uma grande quantidade de marisqueiras e pescadores com câncer porque estão em contato com a Bacia do Rio Subaé. Os resíduos continuam fazendo vítimas na cidade”, denuncia Adailson Pereira. Na década de 1980, os pesquisadores Fernando Carvalho e Tânia Tavares, ambos da Ufba, foram pioneiros em estudar a presença de chumbo em Santo Amaro. Na época, foi comprovado que 96% das crianças em um raio de 900 metros da fábrica estavam contaminadas.
“Os efeitos na população já eram muito claros desde aquela época. O pior efeito do chumbo é que ele afeta o desenvolvimento cognitivo das crianças, e essa foi a nossa maior preocupação desde o início. Ele foi o primeiro metal a ter esse tipo de efeito comprovado no mundo”, explica Tânia Tavares, professora aposentada da Faculdade de Química da Ufba.
Quando soube dos estudos, Antônio Carlos Magalhães, então governador do estado, determinou a construção de uma chaminé para mitigar os danos à população e realocou os residentes que moravam em um raio de 300 metros da indústria.
“Não temos dados atualizados sobre a contaminação. É preciso fazer um novo levantamento com exames de sangue dos habitantes. Mas um mapa recente prova que ainda existe exposição de metais pesados na cidade”, completa Tânia Tavares. A pesquisadora se refere a um estudo publicado em 2018.
A análise de amostras do solo de 39 residências de Santo Amaro identificou níveis “preocupantes” de contaminação de chumbo, cádmio, níquel, zinco, arsênio e antimônio – metais pesados que oferecem risco à saúde. Em 54% das amostras, o nível de chumbo excedeu o que os pesquisadores chamam de valor de prevenção.
Medida cautelar
Mapear a população que sofre com os efeitos da contaminação atualmente faz parte das ações urgentes propostas pelo grupo de pesquisa Historicidade do Estado, Direito e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Ufba. Através do grupo, a universidade busca indenização às vítimas através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
“Solicitamos tutela de urgência para que a Comissão notifique o Estado brasileiro para que cumpra ações emergenciais. Ou seja, antes da denúncia formulada na Corte, estamos pedindo uma análise de urgência”, explica Júlio César da Rocha, diretor da Faculdade de Direito da Ufba e coordenador do grupo de pesquisa. Entre os pedidos estão exames médicos da população exposta ao chumbo e implantação de sistema de tratamento para as vítimas.
por Maysa Polcri / Correio 24h